Pular para o conteúdo principal

São João del-Rei, cingida de sangrento vermelho, saúda São Sebastião

"São Sebastião, livrai-nos da peste, da fome e da guerra!" Talvez seja esta invocação que tenha tornado o santo crivado de flexas tão popular em São João del-Rei desde os primeiros tempos, no alvorecer do século XVIII. Tempos em que o ouro era catado à mão sobre a terra, entre cascalhos na Serra do Lenheiro. Tempos em que a cobiça e a morte reluziam mais do que o ouro fazendo com que, em meio a tanta riqueza, se morresse de fome, de febre, de inanição, de disputas, de emboscadas, de traições, desumanidades, atrocidades e guerras. Como a sangrenta Guerra dos Emboabas, que fez arder em chamas vermelhas o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes, nos idos de 1709.

O culto a São Sebastião, em São João del-Rei realizado na Matriz do Pilar, é dos poucos que reunem, a um só tempo, expressões barrocas e manifestações da cultura popular. Enquanto a Folia de São Sebastião, com seus instrumentos populares e bandeira, percorre as ruas periféricas e alguns becos e largos do centro histórico, do dia 11 ao dia 19 de janeiro, na mais dourada igreja da cidade, em vários horários, os sinos tocam tencões especiais. No começo da noite, uma orquestra bicentenária executa  composições setecentistas e oitocentistas em louvor ao Santo.

No entardecer do dia 20, uma procissão une a todos no mesmo cortejo: a folia, com seus músicos, a bandeira com suas flores e instrumentos populares com suas fitas; a solene e impecável orquestra e até a Banda de Música do Batalhão. Guerreiro, São Sebastião também não foge à luta, como os militares.

Quem bem prestar a atenção, vai ver que a procissão de São Sebastião tem certas peculiaridades. Primeiro, que, à saída, o Santo é saudado por ruidoso foguetório. Depois, que a procissão faz um percurso muito próprio, diferente do trajeto das demais procissões. Também diferente é a presença, no centro do cortejo, do terno de Folia, guarnecido pelas irmandades, porém com os instrumentos em respeitoso silêncio. A marcha que marca o ritmo, rápido e quase bélico, vem da Banda do Batalhão. Fato muito raro, às vezes ainda acontece de se ver meninos vestidos de São Sebastião. Contam que, muito antigamente, da novena até a procissão, tinha barraquinhas com quitandas, bebidas, jogos e  leilão.

Na chegada da procissão, mais um movimento diferente para quem quiser observar: a banda fica na rua; a folia sobe a escadaria até o lado esquerdo do adro; apenas as irmandades e o andor entram na igreja. Esta hierarquia vem do tempo da Colônia, marcando duas formas de estratificação: uma, simbólica (dos profanos instrumentos musicais) e, outra, social (o prestígio periférico do grupo musical espontâneo na sociedade).

Se você estiver em São João del-Rei no dia 20 de janeiro e puder, observe a quantidade de são-joanenses que, intencionalmente ou por acaso, acompanham São Sebastião vestidos de vermelho. Crença, fé, identificação, pedido, promessa, agradecimento, quem sabe? A verdade é que predomina esta cor. E que, durante o ano sem muito alarde, de 11 a 20 de janeiro, São João del-Rei faz muita festa para São Sebastião ...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j