Na véspera do Carnaval, São João del-Rei se vestiu para a barroca Procissão de Cinzas. Há 231 anos...
Por mais estranho que possa parecer, há um elo forte a unir carnaval, fé e religião em São João del-Rei. Certamente não é sem razão que as escolas de samba e os blocos se concentram no centro histórico em território sagrado, delimitado por três das mais importantes e antigas igrejas da cidade- Rosário, Pilar e Carmo. Se na terra, batucando, o couro come, nos ares, dobrando, os sinos falam. Tudo ao mesmo tempo. Há blocos que até, passando em desfile pela Rua Direita, se deslocam alguns metros da rota só para respeitosamente e com orgulho posar (e pousar!) na escadaria da Matriz do Pilar (1).
Voltando no tempo ao distante 1781, encontra-se o registro histórico de um fato interessante, que materializa muito bem esta afirmação: o Edital, publicado no dia 11 de fevereiro daquele ano pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis, fixando as normas da Procisão da Quarta Feira de Cinzas. Como se percebe, era uma encenação teatral dramática, em forma de cortejo, mais extremada e alegórica do que as famosas procissões espanholas da Semana Santa de Sevilha e outras cidades da Andaluzia.
Assim descreve o historiador são-joanense Sebastião Cintra o que deve ter sido aquela célebre e impressionante procissão (2), tomando por base o Edital que normatizou sua realização:
" Ao Irmão Vigário do Culto Divino caberia a incumbência de distribuir as insígnias que ornariam a cruz, os andores e o pálio.
Sairia a Cruz da Penitência com dois braços pregados nela. Um, o do nosso seráfico Patriarca. O outro, de Cristo. Seria levada por um homem vestido de saiote, com o rosto coberto, e seguido por um cordão feito de corda tosca, tendo na cabeça uma coroa feita com a mesma corda.
Figurados que seguirão entre as alas de penitentes:
. A Morte, que conduzirá uma ampulheta e uma foice.
. Duas figuras levgarão bandejas, conduzindo cinzas, caveira e ossos.
. Outra figura levará uma árvore de espinhos, sem folhas, com dois cilícios, disciplinas e livrinhos.
. Siga-se Adão e Eva, vestidos de peles ou de folhas, com 'os olhos no chão'.
. Atrás deles, o Anjo, com a espada na mão.
. A Árvore do Paraíso, com folhas de maçãs, apresentará uma serpente enroscada.
. A figura do Desprezo das Vaidades segue ladeada de duas que levam os adereços desprezados.
. Segue-se a Cruz da Ordem, com seus ciriais, que prosseguirá com todos os irmãos em alas.
. Sairá na frente o andor da Conceição, seguindo-se os outros andores, sendo que o último será o de Nosso Senhor do Monte Alverne."
Depois dos andores, a Mesa Administrativa da Ordem Terceira, tendo ao centro o Vigário do Culto Divino, levando na mão uma vela de libra e coordenando o andamento da tão piedosa procissão. Fechando o cortejo viria o pálio, carregado por personalidades ilustres da sociedade colonial são-joanense, previstas no Edital. Entre os cinco escolhidos, três eram militares, o que evidencia vir daqueles tempos a aproximação que até hoje em São João del-Rei existe entre os militares e a Ordem Terceira de São Francisco de Assis.
Se não houve falha de datilografia dos originais do livro, trocando a palavra irmandades por religião, um aspecto incomum, é que, de acordo com o Edital, não havia restrição religiosa para participar da Procissão de Cinzas, o que teria lhe conferido um certo caráter ecumênico. Isto se infere na leitura da seguinte instrução, citada por Sebastião Cintra: "Mereciam lugares honrosos os irmãos da Venerável Ordem do Carmo que comparecessem vestidos com seus hábitos ; igual distinção deveria ser dada aos religiosos ou leigos de qualquer religião que queiram acompanhar a mesma procissão" - "uma oração pública feita a Deus", durante a qual os irmãos deveriam se portar com modéstia e reverência, em ato tão santo, pio e religioso".
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(1) O Bloco Unidos da Cambalhota não só faz isso quanto, no seu samba-tema 2012, diz que "até o bispo vai abençoar".
(2) Segundo pesquisa arquivística de Sebastião Cintra, no ano de 1863, a Procissão de Cinzas aconteceu no dia 18 de fevereiro.
Fonte: Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Volume 1. 2a edição, revista e aumentada. Imprensa Oficial. Belo Horizonte. 1982
Voltando no tempo ao distante 1781, encontra-se o registro histórico de um fato interessante, que materializa muito bem esta afirmação: o Edital, publicado no dia 11 de fevereiro daquele ano pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis, fixando as normas da Procisão da Quarta Feira de Cinzas. Como se percebe, era uma encenação teatral dramática, em forma de cortejo, mais extremada e alegórica do que as famosas procissões espanholas da Semana Santa de Sevilha e outras cidades da Andaluzia.
Assim descreve o historiador são-joanense Sebastião Cintra o que deve ter sido aquela célebre e impressionante procissão (2), tomando por base o Edital que normatizou sua realização:
" Ao Irmão Vigário do Culto Divino caberia a incumbência de distribuir as insígnias que ornariam a cruz, os andores e o pálio.
Sairia a Cruz da Penitência com dois braços pregados nela. Um, o do nosso seráfico Patriarca. O outro, de Cristo. Seria levada por um homem vestido de saiote, com o rosto coberto, e seguido por um cordão feito de corda tosca, tendo na cabeça uma coroa feita com a mesma corda.
Figurados que seguirão entre as alas de penitentes:
. A Morte, que conduzirá uma ampulheta e uma foice.
. Duas figuras levgarão bandejas, conduzindo cinzas, caveira e ossos.
. Outra figura levará uma árvore de espinhos, sem folhas, com dois cilícios, disciplinas e livrinhos.
. Siga-se Adão e Eva, vestidos de peles ou de folhas, com 'os olhos no chão'.
. Atrás deles, o Anjo, com a espada na mão.
. A Árvore do Paraíso, com folhas de maçãs, apresentará uma serpente enroscada.
. A figura do Desprezo das Vaidades segue ladeada de duas que levam os adereços desprezados.
. Segue-se a Cruz da Ordem, com seus ciriais, que prosseguirá com todos os irmãos em alas.
. Sairá na frente o andor da Conceição, seguindo-se os outros andores, sendo que o último será o de Nosso Senhor do Monte Alverne."
Depois dos andores, a Mesa Administrativa da Ordem Terceira, tendo ao centro o Vigário do Culto Divino, levando na mão uma vela de libra e coordenando o andamento da tão piedosa procissão. Fechando o cortejo viria o pálio, carregado por personalidades ilustres da sociedade colonial são-joanense, previstas no Edital. Entre os cinco escolhidos, três eram militares, o que evidencia vir daqueles tempos a aproximação que até hoje em São João del-Rei existe entre os militares e a Ordem Terceira de São Francisco de Assis.
Se não houve falha de datilografia dos originais do livro, trocando a palavra irmandades por religião, um aspecto incomum, é que, de acordo com o Edital, não havia restrição religiosa para participar da Procissão de Cinzas, o que teria lhe conferido um certo caráter ecumênico. Isto se infere na leitura da seguinte instrução, citada por Sebastião Cintra: "Mereciam lugares honrosos os irmãos da Venerável Ordem do Carmo que comparecessem vestidos com seus hábitos ; igual distinção deveria ser dada aos religiosos ou leigos de qualquer religião que queiram acompanhar a mesma procissão" - "uma oração pública feita a Deus", durante a qual os irmãos deveriam se portar com modéstia e reverência, em ato tão santo, pio e religioso".
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(1) O Bloco Unidos da Cambalhota não só faz isso quanto, no seu samba-tema 2012, diz que "até o bispo vai abençoar".
(2) Segundo pesquisa arquivística de Sebastião Cintra, no ano de 1863, a Procissão de Cinzas aconteceu no dia 18 de fevereiro.
Fonte: Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Volume 1. 2a edição, revista e aumentada. Imprensa Oficial. Belo Horizonte. 1982
Dava tudo pra ver tal cortejo!!!
ResponderExcluirEmilio, adoro ler seu blog, tanto que queria que ele fosse um livro!
Abçs, KK
Kaká,
ResponderExcluirtambém gostaria muito de ter visto a Procissão das Cinzas. Bem que poderia,mesmo que somente com função simbólica, ser retomada.
Os temas do blog são interessantes porque a história e a cultura de São João del-Rei são muito ricas e singulares e descubro boas fontes e referências. Se tenho algum mérito nisso é estar sempre ligado, contextualizar e contemporanizar os assuntos e colocar cor e alma no que é escrito.
Um livro. Pensei nisso quando criei o blog. Quem sabe algum dia? Bastaria apoio.
Grande abraço!