Na noite que sucedeu a tarde em que sepultamos meu pai (18/11), dormi demorado sono profundo. Cansaço, esgotamento, tristeza, alienação, fuga, solidariedade, desejo de identificação - cada coisa ou todas elas, pode ser.
Sonho contínuo, fatos unidos igual às contas do terço que nos últimos muitos anos, antes de dormir, religioso ele rezava. Entre duas pencas de ave-marias, como um perdido Pai Nosso, a pergunta surgiu no território onírico e ficou na memória, mesmo depois de acordar: "Que pode uma criatura senão, entre outras criaturas, amar?"
Assim Drummond, sem explicação, voltara a São João del-Rei para se juntar a mim e a meu pai naquela madrugada. A pergunta brotada no sonho é o primeiro verso do poema Amar, que partilho com os amigos internavegadores, reproduzindo-o abaixo, integralmente, nas formas escrita e falada.
"Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita."
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita."
...........................................................................
Ilustração: anjo em detalhe de mausoléu no Cemitério de São Francisco de Assis de São João del-Rei. (foto do autor)
Meu querido amigo, obrigada por compatilhar esse lindo poema. Mesmo em dias chuvosos você faz o Sol brilhar. Com amor, Ana.
ResponderExcluirSó mesmo você, meu amigo, com tanta sensibilidade, para partilhar conosco essa pérola de Drummond, relacionando-a com a despedida do teu pai. Receba todo o meu carinho.
ResponderExcluir