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Mineirismo, mineirice e mineiridade: saudades do amanhã em São João del-Rei


"Minas, esse espinho que não consigo arrancar de meu coração", confessou, de modo tão profundo e sentimental, Lúcio Cardoso.  Tão poucas palavras exprimem, mais do que todas as combinações de todos os sinais de todos os alfabetos, o elo afetivo que une o mineiro a Minas, se possível fosse separar um do outro. Minas, tragicafetivamente, está marcada  a ouro quente na alma dos mineiros. Desde sempre e para sempre

Frei Beto enfatiza isso em todas as frases, pensamentos e insinuações do texto Ser Mineiro, que reproduzimos aqui a última parte, para reflexão.

Ser mineiro (última parte)
"Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. Esconde o jogo para ganhar a partida. Cumprimenta com a mão mole para escapar do aperto e acredita que a fruta do vizinho é sempre a mais gostosa. Mineiro age com a esperteza das serpentes, mas se veste com a simplicidade das pombas, e encobre suas contradições com o manto fictício da cordialidade.


Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele. Desconfiado, retira o dinheiro do banco, conta e torna a depositar. Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração; andar com guarda-chuva para disfarçar a bengala; fumar cigarro de palha para espantar mosquitos, mascar fumo para amaciar a dentadura.


Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra; escova os dentes do alho; teme rasteira de pé de mesa; toma café ralo para enxergar o fundo da caneca e, por via das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco. Ser mineiro é fingir que não sabe o que bem se conhece.


Mineiro que não reza não se preza. Religioso, na crendice mineira há lugar para todos: o Cujo e a mula-sem-cabeça; assombrações e fantasmas, sacis e extraterrestres. Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar numa briga e a boiada inteira para continuar de fora. Mas se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.


"Minas Gerais é muitas", disse Guimarães Rosa. É fogão de lenha e comida preparada na panela de pedra-sabão; é turmalina e esmeralda; é tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar. É sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite.


Minas é mantiqueira e cerrado, é Aleijadinho e Amilcar de Castro, é Drummond e Milton Nascimento, é pão de queijo e broa de fubá. Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus. Minas é saborosamente mágica.


Mineiro sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Fica uma dor forte, funda, farta e fértil, tão imponderável como o amor místico, em que o coração lateja embevecido por inefável paixão.
 Ave Minas! Batizada Gerais, é uma terra singular."
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Leia as três partes anteriores de Ser Mineiro acessando:

http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com/2011/05/mineirice-mineirismo-e-mineiridade.html

http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com/2011/05/mineirice-mineirismo-e-mineiridade_30.html

http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com/2011/06/mineirismo-mineirice-e-mineiridade.html

Ilustração: Anjos da portada da igreja de São Francisco - Reprodução / tratamento de imagem do calendário São João d'El Rei de todos os dias (1973)

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