Hoje, Domingo de Ramos, em São João del-Rei o tempo já mudou. O início oficial da Semana Santa imerge os são-joanenses em uma outra era emocional, emoldurada e conduzida pelo mais profundo sentimento religioso. Há em tudo uma expectativa determinista do que já é conhecido, que se repete há muitos séculos, mas que é anualmente revivido, como se fosse sempre a primeira vez. Um pesar denuncia o desejo irrealizável de que a história acontecida pudesse ainda ter outro rumo, ou não mais se repetir, como se faz desde sempre.
Tudo começa na Igreja do Rosário, aos pés do Senhor do Triunfo, entre palmas viçosas, pratarias brilhantes, paramentos vermelhos, incensos aromáticos, cruzes cobertas, em meio ao povo que levanta nas mãos ramos verdes que o bispo benze, ao som de antífonas e hinos barrocos do século XVIII que a Orquestra Ribeiro Bastos entoa. Tudo lembra tristemente a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, a caminho do sofrimento e do sacrifício.
O sino toca pungente notas esparsas e compassadas badaladas, que dobram unicamente na manhã de cada Domingo de Ramos, quando começa a procissão que, triunfante, deveria ser alegre, mas não o é. Há na alma são-joanense - que disposta em duas alas atravessa lentamente aquele largo ladeado de brancas casas de colorido colonial - uma certeza suspensa, indesejável mas inevitável: o Calvário está a poucos passos dali, logo à frente, na Matriz do Pilar.
Lá, a narração da história sagrada, iniciada na Igreja do Rosário, dura mais de duas horas e é tão grave quanto os acontecimentos que capítulo relata: a prisão, julgamento, crucifixão e morte de Jesus. O Ofício de Ramos e o Canto da Paixão, compostos pelo são-joanense Padre José Maria Xavier no século XIX, são dramatizações cantadas em latim por quatro protagonistas, entre eles a orquestra barroca, fundada em 1790.
A descrição daquele momento sensível da história da humanidade vai se tornando cada vez mais melancólica e nostálgica quanto mais se aproxima o descendimento do corpo morto de Jesus da cruz, seu embalsamamento e sepultamento no túmulo novo, talhado na rocha, onde nenhum corpo ainda havia sido descansado. Sua entonação final, melodiosa, é terna e dolorosa como uma cantiga de ninar cantada para embalar um filho morto ou um pai que não vai mais acordar.
Um dos momentos mais pungentes da celebração é o canto do Impropérium - uma lamentação de Jesus Cristo que, nos seus pensamentos finais, diz o seguinte:
"O opróbio e as humilhações me dilaceram o coração.
Esperei que alguém se compadecesse de mim e não houve ninguém.
Procurei quem me consolasse e não encontrei.
Deram me fel a comer e vinagre para matar a sede"
Cantado nestas palavras latinas
"Impropérium exspectavit cor meum et misériam.
Et sustínui qui simul mecum contristarétur et non fuit.
Consolántenm me quaesívi te non invéni.
Et dedéunt in éscam meam fel, et in siti ema potaverúnt."
Magnífica descrição!!! É isto, é assim: doloroso e belo, sensível e musical, barroco, comovente... dramático. Parabéns pelo belo texto e por todo este extenso trabalho de difusão cultural feito por este blog. Abç. cordial, UP.
ResponderExcluirUlisses, o mérito é de São João del-Rei, tão rica e única em suas manifestações culturais. Tudo o que faço são anotações limitadas do que consigo apreender deste universo mágico. E muito inspirado na sua produção tão preciosa. Grande abraço também!
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