No principiar de novembro, São João del-Rei volta no tempo. É tempo de Finados. Desde o entardecer do dia 1º até o entardecer do dia 2, de tempos em tempos os sinos das igrejas barrocas dobram Finados - dobre triste, é como um toque inverso, pelo avesso, de trás para frente.
Já na manhã do primeiro dia, nas ruas coloniais do centro histórico, se percebe que é véspera. Os são-joanenses mais antigos, previamente, visitam os cemitérios, vistoriando, limpando e zelando das tumbas e ossuários. Depois, transitam pelas lojas, prevenidos que são, comprando flores artificiais que no dia seguinte serão entregues aos seus mortos. Em São João del-Rei, túmulo descuidado é o mesmo que defunto esquecido, desonrado ou por gosto abandonado, intencionalmente deixado para trás.
Antigamente, no dia 2, as velhas igrejas são-joanenses montavam em seu interior uma instalação funerária, na nave do templo ou em sua capela-mor: um tapete retangular preto ou roxo de galões dourados, quatro altos castiçais com velas compridas acesas, um em cada canto e, no centro, uma "eça" - alta mesa, de madeira escura, algumas com entalhe de caveira nas quatro faces, sobre a qual, em tempos passados, se depositava o caixão com o defunto para as orações do padre, abençoando e encomendando (ou deveria ser recomendando?) a alma a um bom destino no universo sem fim da eternidade.
Também era recomendado que, a pedido do Papa, os fiéis visitassem as igrejas que tivessem estes monumentos fúnebres, entrando nove vezes pela porta principal e saindo pela porta da sacristia, e rezando para a salvação de todas as almas. Em troca, receberiam "indulgências plenárias".
Desde um tempo longínquo se celebra uma missa barroca, às vezes na capelinha do Cemitério da Matriz, às vezes na própria Matriz do Pilar, ao som dos responsórios do Ofício de Trevas da Semana Santa, executados por uma das bicentenárias orquestras locais.
Assim, ao som esparsado dos sinos que de tristeza parecem chorar, tocando pelo avesso, de trás para frente; entre velas, flores e lágrimas, ainda se esvai cada dois de novembro em São João del-Rei, na certeza indesejada de que muitos, hoje no lado de cá, ano que vem estarão no lado de lá.
Veja, no vídeo abaixo, o registro que uma turista fez de um enterro comum em São João del-Rei. Na descrição, ela menciona o que mais lhe chamou a atenção: o respeito dos são-joanenses diante do cortejo fúnebre, inclusive do comércio, que cerra as portas quando por aquela rua vai passar um defunto. Somente respeito, ou crença e superstição? Memórias antigas podem responder porque. Mas isto é tema para os pesquisadores de São João del-Rei.
não entedi bem"como um toque inverso, pelo avesso, de trás para frente."
ResponderExcluireles so dobram de traz para quando é padre.
helvecio benigno
Olá, Helvécio,
Excluireste almanaque eletrônico se sente muito prestigiado com sua visita e com seu comentário. Para quem não sabe, Helvécio é profundo conhecedor dos toques de sino de SJDR e cinegrafista com preciosos registros videográficos sobre as tradições barrocas da cidade. É de sua autoria, por exemplo, o vídeo A Senhora é Morta, já apresentado como ilustração neste Tencões & terentenas.
Sobre a expressão "toque inverso, pelo avesso, de tras para frente", a escrevi como um exercício de linguagem, como uma licença poética. Com ela, minha intenção era mostrar que o toque de Finados, por ser de tristeza profunda, é muito diferente da maioria dos toques de sinos de nossa terra, que são de festa e alegria.
Sinceramente, não sabia que o toque "de tras para frente" existe de fato e é executado para anunciar a morte de padres. Isto aprendi agora, com você.
Mais uma vez obrigado e um abraço.