A melhor, mais autêntica, original, saborosa e nobre cozinha de São João del-Rei pouco sai às ruas. Se cultiva, se alimenta, se consome e se preserva no interior das casas simples - arroz com feijão, às vezes tutu, angu, almeirão, agrião, abobrinha batida, abóbora, abóbora d'água, broto de abóbora, berinjela, beldroega, batata, batata doce, batata baroa, bambá, cará, couve, chicória, chuchu, dobradinha, espinafre, frango com quiabo, frango a molho pardo, farinha torrada, gembê de mamão verde e de chuchu novinho, inhame, jiló, lombo, língua, linguiça, mandioca, mamão verde, moranga, mugango, mostarda, maneco com jaleco, moela, mocotó, maneco sem jaleco, mexido, miúdos, mingau, ora-pro-nobis, pela-bico, pernil, pimentas várias, quiabo, salsinha, taioba, torresmo,tomate, umbigo de bananeira, urucum, vaca atolada. Da culinária são-joanense pode de extrair vários alfabetos.
Isto sem falar das carnes e dos doces. Arroz-doce, doce de abóbora em calda e em creme, doce de batata doce, cocada, doce de leite, doce de figo em calda e cristalizado, doce de cidra, de laranja, de mamão, de pau de mamão, de banana, de goiaba em calda, cremosa e goiabada cascão, doce de feijão - muitos deles saboreados com queijo, após as refeições, antes do licor e do café.
A verdadeira cozinha de São João del-Rei é doméstica e intima. Se perpetua pela observação e pela intuição. Pouco cruza a porta da rua, mas se adentra pelas hortas e quintais, em busca do que de mais peculiar oferece a terra. Sejam alimentos subterrâneos, alastrados na superfície, suspensos em caules e arbustos ou espalhados feito cipós pelos galhos e cercas.
Quando sai porta afora a cozinha são-joanense não vai a locais refinados, sofisticados. Prefere restaurantes acanhados e botequins despretensiosos, onde pode mostrar, sem acanhamento nem vergonha seu acre sabor e seus singelos ingredientes. Quem a prepara, prepara como se fosse para si próprio. E às vezes o é, só que, mais por generosidade do que por necessidade, partilha com quem a deseja.
Falando sobre este assunto, em um de seus livros aqui não identificado, Autran Dourado tristemente profetizou:
"... Minas vai acabar, eu sei. Minas de antigamente, a nossa, a eterna, com a qual nos defrontaremos no juízo final, quando tivermos de prestar contas e nos perguntarem o que fizemos daquela sopa tão boa chamada Maneco com Jaleco.
Por mais que a gente queira fazê-la de novo viver, há sempre os olhos dos drugstores espreitando, ameaçando com seus hambúrgueres, catchups e outros assassinos.
Tempos bons dos doces e quitandas, das deliciosas comidinhas mineiras. Nada de serviço à francesa, os pratos todos à mesa, fumegantes e cheirosos. O mundo não havia começado ainda a se americanalhar, ninguém comia comida de sal com doces e frutas em conserva.
A continuar como está, cortando a Serra do Curral e só pensando em siderurgia, os mineiros de hoje vão acabar lambendo lingotes de ferro..."
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SERVIÇO - Para saber mais e aprofundar-se sobre cozinha mineira: memória, identidade e territorialidade, acesse e leia:http://bdm.bce.unb.br/bitstream/10483/994/1/2009_AntonioEmilioCosta.pdf
"E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas. Era o encanto de Minas". (Almoço Mineiro-Rubem Braga)
ResponderExcluirKK,
Excluiraquém ou além da Serra do Lenheiro, sempre dá água na boca, não é mesmo?
Grande abraço!
Delícia de postagem, temperada com uma pitada de Minas Gerais... A leitura deu-me água na boca! Suas palavras revelam a São João que me sintoniza com a cultura de raiz. E por falar em raiz, que tal uma batata-baroa com pedacinhos de carne cozinha (peito de boi!)...
ResponderExcluirUm abraço, Ulisses.
Muito bom! Convite aceito. Para outro dia...
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