Quando nasceu o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes, em 1704, o ouro brotava à flor da terra, às margens do riacho e nos cocurutos da Serra do Lenheiro, entre cascalhos, quartzos e raízes, abrindo trilhas que, pouco tempo depois, em 1713, viraram ruas da nascente e fulgurante Vila de São João del-Rei.
Metal precioso, o ouro esgotou-se. Mas do solo são-joanense continuou brotando outro ouro, ainda mais brilhante, fino e precioso: um povo cuja alma é iluminada pela fé, pela arte, pelo saber e pela cultura. Duvida?
Quem percorre, nas noites de sábado, entre telhados, lampiões, sinos e torres, os largos, becos e ruelas, igrejas e cemitérios do centro histórico de São João del-Rei, acompanhando o espetáculo itinerante Lendas São-Joanenses, não imagina que a estória fantástica do menino perdido que foi devolvido à família por Nossa Senhora, do defunto que o diabo levou para o nunca mais, da mãe morta que voltou ao mundo a pedir comunhão para o filho agonizante, da bisbilhoteira castigada meia-madrugada durante uma Encomendação de Almas, da viúva piedosa que assistiu a uma missa do outro mundo e morreu ao ver que já estava lá, do devasso que deitou, deleitou-se e dormiu com uma mulher fatal e acordou sobre uma cova fria no Cemitério do Carmo, do garimpeiro que vendeu a alma ao senhor das trevas em troca de ouro, não imagina que tudo isto foi recolhido e elaborado por um escritor são-joanense importante, que viveu de 1894 até 1969, entre São João del-Rei e duas outras importantes capitais brasileiras.
Como ele se chamava? Lincoln Teixeira de Souza, ou, simplesmente, Lincoln de Souza, como assinava suas obras. De que família ele era? Era neto de Antonio Teixeira Carvalho Pinho, maestro da Orquestra Lira Sanjoanense, na primeira metade do século XIX. Quer saber mais sobre ele? Então veja:
Lincoln Teixeira de Souza era um homem de muitos instrumento e firmou-se no universo intelectual brasileiro por volta de 1920, quando mudou-se para Belo Horizonte e tornou-se amigo do poeta Drummond. Naquela época pipocavam as primeiras inquietações da Semana de Arte Moderna. Interessado pelo desconhecido mundo dos índios, fez expedições ao Planalto Central e produziu várias obras documentais escritas e fotográficas sobre os Xavantes e outros povos indígenas. Deste modo foi pioneiro do indigenismo nacional.
Também pioneiramente, já naquela época, sabia o valor do turismo e dizia que esta era uma atividade capaz de colocar o homem à frente de seu tempo. Foi quando, nesta lente, fotografou Paris, Bruges, Lisboa, Bordeaux e, claro, a sua São João del-Rei. Tornou-se, assim, precursor da divulgação turístico-cultural de nossa cidade. Aliás, foi ele também que, no dia 8 de abril de 1941, usou pela primeira vez a expressão "Cidade dos Sinos" para referir-se à São João del-Rei. Sua obra Contam que... , lançada em 1920, foi editada 13 vezes e há várias décadas está esgotada.
Falando sobre a poesia de Lincoln de Souza, Carlos Drummond de Andrade disse, por volta de 1920: "Foi uma hora amável a que você me deu seu livro. E uma hora amável, de fina emoção e doce encantamento, é mais raro dos acasos, nesse tempo de coisas tristes e feias...
Devo dizer-lhe que seu livro me encantou - mas ao mesmo tempo me encheu de melancolia. No seu jardim, as flores e as estátuas têm uma beleza dolorosa, e na água dos repuxos há uma queixa sutil, de velhas mágoas recalcadas. Há sombras cinzentas vagando pelas alamedas e, não raro, chove uma chuva fina, penetrante, e desconsoladora. Por isso mesmo, mais quero o seu livro: porque tocou a minha sensibilidade e me disse de coisas dolentes e misteriosas."
Sobre o livro de lendas Contam que... o maior folclorista brasileiro, Câmara Cascudo, declarou, no dia 30/03/1954: " Ao texto, não há senão louvor e sonhos de continuação. Tudo ali me agrada, na linguagem lépida e nítida, a precisão vocabular fixando definitivamente o tema, o encanto das escolhas dos assuntos, as soluções terminais, enfim a maneira que será sinônimo de processo, de comunicação ao leitor na mesma intimidade emocional como sente o mineiro cheio de recordações e lembranças de sua terra natal."
O grande escritor Josué Montello, à época diretor da Biblioteca Nacional, assim lhe escreveu, em 05/04/1948: "Quando se alcança a posição que hoje você ocupa, os louvores não servem mais como recompensa.O que realmente tem importãncia é a consciência de que se dedicou à vida literáriao melhor de suas horas, proporcionadas por Deus."
Além de sua obra, Lincoln de Souza deixou parte de sua herança patrimonial para São João del-Rei. Doou livros para a Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida, coleção de pinturas e outras obras de arte para o Conservatório de Música Padre José Maria Xavier, uma casa na histórica Rua Santa Teresa, em São João del-Rei, e um apartamento no Rio de Janeiro para a Paróquia do Pilar e um terreno, na Rua Paulo Freitas, no bairro das Fábricas de São João del-Rei, para a obra social Vovô Faleiro.
Tendo vivido 75 anos completos, deixou o mundo no dia 11 de agosto de 1969. Mas a população são-joanense de nossos dias praticamente nada sabe sobre Lincoln de Souza: quem era, o pioneirismo nacional de sua obra, como amava e divulgava São João del-Rei...
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Saiba mais sobre o espetáculo teatral itinerante Lendas São-joanenses, inspirado no livro Contam que..., de Lincoln de Souza, acessando http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com.br/2011/02/medos-misterios-e-segredos-na-noite-de.html
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Fonte: PASSARELLI, Ulisses. Lembrando Lincoln de Souza. Apresentação feita no Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei em 02/11/2008.
Emílio,
ResponderExcluirgarimpado com essa qualidade, vou te contratar para procurar "ouro" lá em Pitangui!!! Excelente post. Abraço.
daquidepitangui.blogspot.com.br
Leo, te garanto que não vai ser difícil descobrir ouro bom p'quelas bandas. Aliás, já achei uma grande pepita: a pessoa com quem falo!
ExcluirGrande abraço.
Emílio, muito grato mais uma vez. Obrigado pela referência e parabéns pela notável postagem. A vastíssima obra de Lincoln, uma das glórias de nossa São João, foi magnificamente abordada a pouco pelo criterioso pesquisador Francisco Braga, que foi muito além de onde eu tinha parado. Continue, meu prezado Emílio, a deliciar todo mundo com essas preciosidade de nossa terra! Abç.Ulisses.
ResponderExcluirUlisses, vou conhecer a produção de Braga sobre Lincoln de Souza. Aprenderei muito com ele. Braga é um grande músico e pesquisador dedicado e competente que presta grande contribuição à cultura de SJDR atributos que já foram modestamente lembrados neste almanaque eletrônico http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com.br/2012/07/do-barroco-ao-eletroacustico-mais.html
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