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Incêndio destruiu casarão histórico em São João del-Rei. Mas o amor ao passado não virou cinzas!


Há 18 anos, no dia 5 de julho de 1995, no começo do anoitecer, os sinos do centro histórico de São João del-Rei dobraram descompassados e aflitos. Não era o toque de Ângelus, nem chamada temporã para a novena do Carmo, nem brincadeira de sineiros. Era um aviso sinistro: aquela noite tenebrosa trouxe consigo um violento incêndio que em vorazes labaredas devorou o sobrado de esquina onde há mais de cem anos nascera o presidente eleito Tancredo Neves.

Desacostumado deste tipo de desastre, o povo são-joanense, assistiu atônito o fogo alastrar-se, derrubando  abaixo sacadas, vidraças, beirais, platibanda, telhado, tijolos, cumeeira, ladrilhos - tudo, do que muita coisa já era cinzas quando soldados do Corpo de Bombeiros, vindos de cidades vizinhas, duas horas depois, chegaram ao pedaço do inferno em que se transformou o imóvel daquela torta encruzilhada

O fato foi noticiado em tempo real pelo Jornal Nacional daquela noite e, no dia seguinte, era manchete, matéria ou nota nos principais jornais e telejornais do país.

Mesmo consternada, a comunidade são-joanense manifestou não só tristeza e solidariedade, mas também preocupação com aquela ferida cultural aberta a fogo no coração de São João del-Rei. Muitos, inclusive, encaminharam correspondências publicadas pela imprensa estadual e nacional, como por exemplo as mensagens do autor  deste almanaque eletrônico, publicadas nos seguintes diários, aqui transcritas:

Estado de Minas (14/07/1995) -  "O incêndio do Solar dos Sade, onde nasceu o ex-presidente Tancredo Neves, em São João del-Rei, foi eficientemente coberto pela imprensa televisiva, transmitindo quase ao vivo a voracidade das chamas e o prejuízo material e cultural causado pelo acidente.

São João del-Rei precisa, mais do que nunca, de uma unidade do Corpo de Bombeiros, uma vez que o risco de incêndios não é a única ameaça aos preciosos registros do passado que a cidade produziu e guarda. A cidade precisa de maior comprometimento e determinação do poder público, em suas três esferas, para elaboração e implantação de uma política de preservação cultural.

Sem uma mudança de mentalidade e conduta. só uma unidade do Corpo de Bombeiros é muito pouco e não garante plenamente a segurança, proteção e preservação de vários capítulos da história do Brasil escritos em São João del-Rei."

Jornal de Brasília (12/07/1995) -  "Passado em cinzas - Conforme publicado na imprensa brasiliense na semana passada, o ministro da Cultura, Francisco Weffort, afirmou que "o Brasil tem necessidade de produzir mais cultura". Concordo com o ministro, mas o cotidiano mostra que o Estado brasileiro precisa - e muito - desenvolver esforços mais efetivos e eficazes para a preservação da memória nacional.

Prova disso é o incêndio ocorrido na noite do dia 5 passado, em São João del-Ei, cidade setecentista, possuidora de rico patrimônio cultural, do qual fazem parte, inclusive, obras de Aleijadinho, documentos da Inconfidência Mineira, partituras bicentenárias, livros raros do século XVI e XVII e até uma coleção de jornais franceses do século XVIII.

Como a cidade até hoje (1995) não conta com uma brigada do Corpo de Bombeiros, e muitos imóveis que guardam estes acervos não possuem estrutura adequada de segurança, uma precio sa fração da memória nacional está exposta a todo tipo de ameaças.

No acidente citado, poderíamos atribuir à fatalidade a culpa por nossas perdas culturais irreparáveis, mas a verdade é que o poder público precisa ser mais determinado em sua luta pela preservação da memória. Preocupado com o patrimônio daquela cidade, em 17 de maio passado, como cidadão, encaminhei correspondência ao Ministério da Cultura, mas imagino que o assunto não recebeu a atenção merecida, pois não recebi resposta.

Cidadão são-joanense, espero que o incêndio motive, pelo menos, a adoção de medidas eficazes de proteção, preservação, conservação e divulgação do patrimônio daquela cidade - medidas estas compatíveis com a seriedade de qualquer nação que pleiteie ser reconhecida e respeitada internacionalmente  e alcançar a modernidade e o "Primeiro Mundo".

A foto na abertura deste post mostra o sobrado reconstruído e o link abaixo leva a um vídeo que documenta o incêndio
http://www.youtube.com/watch?v=Db8Ig_7qEsE&feature=endscreen&NR=1

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