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Retrato falado da Procissão das Cinzas de São João del-Rei no começo do século XIX


2013 - Há exatamente 150 anos, no dia 18 de fevereiro de 1863, as ruas de São João del-Rei foram cenário para mais uma Procissão das Cinzas. Promovida pela Ordem Terceira de São Francisco, esta procissão era realizada sempre na Quarta-Feira de Cinzas, para assinalar o começo da Quaresma e conclamar o povo são-joanense ao jejum, à abstinência e penitência.

Tudo indica que este ritual já era tradicionalmente praticado em nossa cidade há muitas décadas, senão desde o século XVIII, pois o viajante francês Augusto de Saint-Hilaire, que visitou São João del-Rei em 1819 e em 1822, assim a descreveu em sua caderneta de campo, onde registrava suas anotações de viagem (versão simplificada):

"(...) Por volta das cinco horas, a procissão entrou na rua onde morava o pároco. À frente, vinham três mulatos, com túnicas cinzentas. Um deles carregava uma cruz de madeira e os outros dois, um de cada lado, carregavam altas lanternas. Em seguida vinha um personagem caracterizado como um esqueleto, representando a Morte, fingindo golpear, com uma foice, as pessoas que assistiam passar o cortejo.

Em seguida vinha outro conjunto, iniciado por um homem com um manto cinzento, trazendo nas mãos uma grande bandeja de cinzas. Também tentava marcar a testa de quem assistia sua passagem. Atrás dele, uma mulher branca, cheia de "atavios" e um homem de manto cinza, levando nas mãos um galho de árvore repleto de maçãs e com a escultura de uma serpente enrolada em seu tronco. O homem representava Adão e a mulher Eva, pois volta e meia aproximava-se do galho e fingia colher uma maçã. Finalizando este grupo, vinham dois meninos: um, com um fuso, fiando um tecido de algodão era Abel e o outro, com uma enxada com a qual batia no chão fingindo cavar a terra, era Caim.

Na sequência vinham treze andores, com imagens em tamanho natural, esculpidas em madeira e vestidas com tecido, entre elas: Jesus orando no Jardim das Oliveiras, Santa Maria Madalena, Santa Margarida de Cortone, São Luís Rei de França, Santo Ivo bispo de Chartes, São Lúcio e Santa Bona, Nossa Senhora cercada de nuvens e querubins, São Francisco recebendo do Papa o estatuto de aprovação da Ordem Terceira, São Francisco recebendo os estigmas de Cristo, São Francisco sendo beijado por Cristo.

Meninos vestidos de anjos serafins, com saias-balão bem armadas, corpetes plissados com asas e diademas brilhantes na cabeça circundavam os andores. Finalizando, vinha um padre com a custódia dourada do Santíssimo Sacramento.´

As roupas dos figurados, em cores fortes e bastante vivas, condiziam com as pessoas que as vestiam e as imagens dos andores eram verdadeiras obras de arte, pois haviam sido esculpidas imaginativamente, devido à falta de ilustrações e modelos vivos na região.

Quando a procissão passou em frente à casa do vigário, um grupo de músicos cantou um moteto e, à passagem de cada andor, o povo se ajoelhava numa breve genuflexão, mas logo voltava a conversar".

Muitas das imagens que saíram nos andores desta procissão ainda hoje estão nos altares da igreja de São Francisco de Assis de São João del-Rei. A imagem de Santa Margarida de Cortone está exposta no Museu de Arte Sacra. Vale a pena visitar e conhecer!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa / Cemitério do Carmo - fragmento sepulcral
Fonte:
SAINT-HILAIRE, Augusto - Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1975 -
http://www.sjdr.com.br/historia/celebridades/hilaire.html 

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