Já faz mais de três décadas que as ruas de São João Del-Rei, durante a Semana Santa, apresentam um novo atrativo que encanta sanjoanenses e turistas: os delicados tapetes decorativos. Especialmente aos sanjoanenses, essa expressão cultural atrai duplamente, pois além de admirá-la, eles podem participar de sua produção e, assim, ser protagonistas de uma ação criativa que demora oito, dez horas para ser realizada, mas é muito efêmera. Em quinze, vinte minutos, o céu no chão se desfaz sob o caminhar de anjos, virgens, virtudes, reis, profetas, heróis, apóstolos, guarda romana- personagens do Velho Testamento que, voltando no tempo, vêm à frente do Senhor Morto na procissão do Enterro de Sexta-Feira da Paixão.
Enfeitar ruas para procissões é tradição em diversos países católicos e forrar as ruas com folhas e flores também é comum em países da Península Ibérica e da América Central. Nas velhas cidades brasileiras, essa manifestação evoluiu para a confecção de tapetes de areia, flores e serragem, ilustrados com a iconografia de símbolos religiosos. Em São João del Rei, os tapetes são tão criativos, minuciosos e delicados que é impossível não considerá-los sofisticadas obras de arte. Extremamente breves, passageiros, mas obras de arte.
Os tapetes do Largo de São Francisco são os mais elaborados, tanto na concepção quanto na execução, e também os mais extensos. Inseridos na programação do projeto Atitude Cultural, antes nas programações do NAC-Núcleo de Assessoria Cultural, na verdade são arte-manifesto porque, além de encantarem pela beleza, procuram chamar a atenção para os valores culturais sanjoanenses e para a necessidade de preservá-los. Em 2008, esses tapetes se estenderam pela Rua da Prata, possivelmente somando 300 metros de extensão. Se estenderam pela Rua Balbino da Cunha e, a continuar se alastrando com tamanho entusiasmo, não se sabe até onde deverão chegar. Demonstrando o espírito comunitário da atividade, mais de 200 pessoas, espontaneamente, participam da criação e confecção, algumas apenas por alguns instantes, outras desde os riscos iniciais até o fim da execução.
A idéia é tão contagiante e vitoriosa que, em 2008, o Largo do Rosário também ganhou um belo e extenso tapete, resultado de um trabalho de inserção social de crianças das comunidades mais afastadas do centro histórico, realizado pela Oficina Artes da Terra.
Já o tapete do largo frontal da igreja do Carmo, tradicional e austero, lembra que em tempos passados, à meia-noite, a Procissão do Enterro saía daquele lugar e ostenta sempre, em cores e traços econômicos, a imagem da face de Cristo impressa no Santo Sudário, são realizados pelo Grupo Arte de Rua.
Na Colônia do Marçal, um grupo de adolescentes já se responsabilizam pela arte, através da Associação Tapetes de Rua. Desta forma, a paisagem dos principais largos por onde passa a Procissão do Senhor Morto são, na Sexta-Feira da Paixão, suporte para essa expressão artística, à exceção o Largo das Mercês, até então não adotado por nenhum grupo disposto a lhe reverenciar com a atividade comunitária e manifestação cultural. Quem sabe se, nos próximos anos, alguns sanjoanenses se dispõem a tomar essa iniciativa e outros se propõem a “estender” tapetes em mais trechos do percurso da Procissão do Enterro, tão especial para o povo de nossa terra.
Onde tudo deve ter começado ...
Revirando documentos históricos, vemos que não é de hoje que o povo de São João del-Rei tem gosto especial por produzir expressões artísticas passageiras, criadas especialmente para fatos importantes. As Exéquias de Dom João V, por exemplo, realizadas em dezembro de 1750 não tiveram, no Brasil, celebração tão expressiva quanto as celebradas na Matriz do Pilar, registradas em publicação do século XVIII que noticiou a Portugal as homenagens prestadas ao monarca defunto na Vila de São João. Entre essas homenagens, um mausoléu temporário no centro da nave da igreja.
Daquela época à metade do século XX, os tapetes de rua repetiam iconografias simples, utilizando flores, folhas, areia branca e serragem, nas procissões festivas, como Ressurreição, Corpus Christi e homenagens a Nossa Senhora. Principalmente flores vermelhas, amarelas e de outras cores fortes, como bico de papagaio, alegria bunganvília, fogo de mulher velha e monsenhor. As janelas das casas térreas e dos sobrados emolduravam o quadro bucólico, com toalhas rendadas e vasos de flores. Na rasoura de Nossa Senhora das Dores, em derredor da igreja do Carmo, manjericão, crista de galo e folhas de coqueirinho roxo apelavam para a memória olfativa e visual, pelo aroma e pela cor.
Os sinais de modernidade dos anos cinqüenta e sessenta marcaram São João del Rei, com arroubos de verticalização urbana, linhas retas e pilotis e pelo abandono a algumas tradições culturais. Sobretudo aquelas voluntárias e espontâneas, como os tapetes de procissão e outras manifestações que nos anos setenta do século XX já estavam inexpressivas.
Uma das ações visando despertar para essa perda foi a realização de várias edições da Exposição de Arte e Artesanato Edmundo Dantés Palhares. Visionariamente à frente desse projeto, Ângela Cordeiro, Maurício Popó, Jaime Vieira, Francisco Vieira, Miguel Bezamat e várias outras pessoas se dispunham tanto a identificar o que havia de mais significativo em termos de arte e artesanato na região quanto a viabilizar formas para que essa produção fosse exposta e comercializada na Semana Santa, para sanjoanenses e para turistas, já que é a época em que a cidade recebe o maior contingente de visitantes.
Santa Ceia no Cantinho da Canja
Tal qual nos tapetes do Largo de São Francisco, as exposições eram ponto de encontro onde os sanjoanenses - residentes e exilados - reconheciam a riqueza cultural de São João del Rei e discutiam fatos recentes que valorizavam ou degradavam o patrimônio e a memória da cidade. Em 1983 não foi diferente. Na Quinta-feira Santa, 31 de março, após o Lava-pés, conversávamos Ângela, Popó, Jaime, Rita Hilário, Mauro Marques e eu na casa mais antiga, onde estava montada a exposição de arte e artesanato, sobre o assunto acima, quando me veio a idéia de se recriar a tradição dos tapetes de rua, transformando-a em arte-manifesto. Minha proposta era começarmos naquele ano mesmo, reproduzindo em um grande tapete de areia e serragem, no Sábado de Aleluia, na Rua Santa Teresa, em frente à exposição, a capela do Bonfim. A idéia era ousada, pois não se tinha preparado qualquer material nem equipe, mas aos poucos outras pessoas foram se juntando na conversa e a proposta contagiou.
De lá fomos para o Cantinho da Canja, onde planejamos detalhadamente a operação, que deveria começar pedindo aos moradores da Rua Santa Teresa e arredores que, na Sexta-feira da Paixão, juntassem borra de café para tal produção. Quase clareava o dia quando “os trabalhos foram encerrados”.
Manhã de Sábado Santo, 2 abril de 1983. Na rua Santa Teresa, um grupo grande de crianças e jovens movimenta-se na ação criadora do primeiro tapete de rua da nova era. Os moradores participam ativamente, trazendo materiais que possam ser úteis na produção; ajudam no tingimento de areia e serragem e no preenchimento das cores; entusiasmam os criadores; se encantam com paisagem que vai se revelando sobre o chão de pedra. O Jornal Hoje noticiou o falecimento de Clara Nunes. 4 da tarde. No balcão de madeira da casa mais antiga, pessoas se revezam para ver, do alto: o céu no chão!
Nos anos seguintes, o tapete itinerou: na Rua Getúlio Vargas, a igrejinha de Santo Antônio; no Largo do Rosário, o Cordeiro de Deus sobre o Livro dos Sete Selos (bela criação de Carlos Magno inspirado no medalhão do frontispício da Matriz do Pilar); em frente à Prefeitura, o Descendimento da Cruz; em frente ao Solar da Baronesa, o Anjo São Miguel.
Assim foi o início da história da nova era dos tapetes de rua de São João del Rei. O resultado de uma idéia solitária, que foi encampada por todos e se materializou na nova forma de expressão artística sanjoanense, que hoje, inclusive, é motivo de orgulho e já faz parte do calendário turístico e cultural da cidade.
A ação se expandiu, inclusive para outras partes de São João del-Rei. A comunidade do Senhor dos Montes também confecciona tapetes singelos - mas não menos belos ou importantes -, tornando ainda mais bucólicos os caminhos íngremes e crepusculares por onde passam, no primeiro domingo de todo setembro, os andores de seus santos padroeiros. E na Sexta Feira da Paixão, estampa cenas bíblicas no largo da bicentenária igrejinha, em frente ao Cruzeiro da Penitência.
Nos bairros da Colônia e do Tijuco, em festas religiosas especiais, também se pode admirar belos tapetes de rua, algumas vezes até usando materiais alternativos, como por exemplo tampas de garrafa pet, de água mineral e outras.
É a tradição viva, sempre se renovando, tornando mais felizes os dias humanos...
Comentários
Postar um comentário