Pular para o conteúdo principal

Semana Santa / Festa de Passos. Andam faltando anjos no céu de São João del-Rei?

A brisa suave de outono, as orquídeas, as hortências, o verde brilhoso das folhas das árvores, o céu azul, as quaresmeiras arroxeadas, o bando de andorinhas que corta a tarde crepuscular no Largo do Rosário, a Serra do Lenheiro roxodistante... Este é o cenário natural em que acontecem, em São João del-Rei, as "Solenes Celebrações dos Passos de Nosso Senhor Jesus Cristo a Caminho do Calvário", ou simplesmente a Festa de Passos, como é mais conhecida.

É a mais extensa celebração da Quaresma na "terra onde os sinos falam" e, sem sombra de dúvidas, uma das mais tocantes. Ao que tudo indica, a que mais se manteve fiel a tudo o que a caracterizava no século XVIII, quando foi fundada a Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos.

O toque dos sinos enfeitados com penachos de longas fitas de papel crepom roxo, que se desprendem dos badalos e voam, povoando os ares de tons melancólicos e comoventes. Os motetos e cânticos barrocos. Os andores velados, forrados com manjericão roxo e branco. O rosmaninho a perfumar o chão das igrejas. O incenso embalsamador das lembranças longínquas. O grande pendão à frente do cortejo, com suas quatro letras douradas S.P.Q.R - São Pedro quer rapadura, traduzem bem humoradas crianças travessas. Roxo por toda parte. Tudo tal qual era antigamente.

Mas algo anda acontecendo que, nos últimos anos, é cada vez menor a legião de anjinhos que acompanha Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores. Às vezes, não se vê nenhum nas rasouras do Domingo de Passos e poucos, esparsos, na Procissão do Encontro. Na Procissão da Soledade, então, é comum Nossa Senhora, lastimosa - a solidão em pessoa - chorar suas dores na companhia de um único anjinho. Tão solitário quanto ela.

Desde os tempos coloniais, vestir crianças de anjo nas procissões é uma tradição brasileira, muito presente nos cortejos religiosos setecentistas das cidades históricas de Minas Gerais. Era um recurso que a Igreja utilizava para aproximar infância e religião, iniciando logo a evangelização. Para as crianças, era um momento especial, que se tornava inesquecível por toda vida: ser alvo de atenção elogiosa e orgulho de seus pais e parentes, que se sentiam dignamente representados, com destaque, por seus rebentos, em um acontecimento tão solene.

Nos últimos anos, a ausência de anjinhos nas procissões vem sendo bastante sentida. Sem eles fica a faltar no cortejo celeste a pureza e a inocência que são próprias dos querubins.  Mas isto pode mudar e o céu pode ficar ainda mais presente nas procissões de São João del-Rei. Basta os pais  e avós proporcionarem às suas crianças este presente inesquecível por toda vida: uma túnica de cetim, um diadema florido e um par de asas. Todas as crianças que viveram esta experiência têm hoje, na memória sentimental e afetiva, uma lembrança eterna. E a sua também pode ter. Só depende de você...


Leia também
http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com.br/2014/04/aquarela-da-festa-de-passos-em-sao-joao.html

Comentários

  1. Emílio, como sempre a poesia salta em suas letras. Dessa vez um protesto-convite em forma muito agradável. Parabéns e que nossas anjas e anjos estejam sempre presentes. Ótima percepção. Abraços.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j