Pular para o conteúdo principal

A mítica e a mística popular na Quaresma de São João del-Rei


Antigamente, a Quaresma era um tempo tenebroso em São João del-Rei. Acreditavam os mais velhos que no Carnaval o Diabo era solto da prisão do Inferno e desde então ficava vagando pela Terra até o momento em que se comemorasse, com sinos e com foguetes, o Aleluia. Relacionavam este período aos quarenta dias em que Jesus jejuou no deserto e foi tentado por Satanás.

A partir da Quarta-feira de Cinzas, cessavam os bailes nos clubes. Nas casas, os radios funcionavam em volumes mais baixos e não raramente as pessoas evitavam fazer barulho, batucar, cantar e até falar alto, em compaixão e respeito àquele que, no final dos quarenta dias, todo ano é crucificado. Era comum praticar jejuns curtos e voluntários, assim como em hipótese alguma se deveria comer carne às sextas-feiras, substituindo este alimento por ovo ou sardinha em lata. Os mais penitentes estendiam  este sacrifício também para as segundas e quartas-feiras. Bebidas alcóolicas, convinha evitá-las ao máximo.

Era comum contar casos testemunhais que envolviam assombrações, lobisomens, sacis e mulas-sem-cabeça, disseminando entre as pessoas simples o medo de feitiçaria e o temor ao Divino e ao Coisa Ruim. Por isso, poucas eram as pessoas que passavam por encruzilhadas ermas e nas horas mortas ou que ficavam nas ruas por volta da meia-noite. Estariam correndo risco de se encontrar com o Diabo ou de serem acusadas de perigosas e malfazejas, por terem contato com o outro mundo.

Clima tão mítico e ao mesmo tempo tão místico incentivava a prática de orações, rezas, defumações, simpatias, benzeções, crendices e superstições - coisas que davam vida e fortaleciam a cultura popular. Mais do que isso, aumentavam a presença da imaginação criativa e de seus efeitos pitorescos no dia a dia local, em uma época muito peculiar do calendário religioso.

De um modo geral, a urbanidade e o anseio por modernidade estão a extinguir o sentimento especial que cobria de nebulosidade mágica e de muito mistério o tempo da Quaresma em São João del-Rei. Hoje, a tecnologia devassa tudo, mostra até o avesso das casas dos becos mais retorcidos e escuros. A toda hora tem alguém na rua, a caminho do trabalho, voltando da farra, procurando o que não perdeu, comprando remédio na farmácia, pegando o que não lhe pertence, se abastecendo em um posto de gasolina ou numa loja de conveniência.

Daí, então, a mítica deste tempo místico desapareceu no homem atual. Sobrevive apenas na lembrança daqueles que já estão esgarçando a memória a caminho do esquecimento. Felizmente, São João del-Rei tem o grupo teatral Lendas São-joanenses, que noturnamente encena, em alguns sábados, para nativos e turistas, estórias antigas e assustadoras no cenário histórico povoado por muito silêncio e por muitas cruzes.


Ilustração: Urubu do Flamengo - altar na parede lateral esquerda de um bar da Avenida Leite de Castro, em SJDR (foto do autor)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j