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Sapateiros do tempo em que Adão rodava pião na palma da mão. Coisas de São João!


Sr. Geraldo, mestre da Sapataria Nossa Senhora do Carmo, em sua mesa de trabalho

Quase ninguém sabe, mas o ofício de sapateiro foi um dos primeiros serviços oficializados na Vila de São João del-Rei. Consta que, no dia 20 de julho de 1719, o Senado da Câmara local concedeu licença para Manoel de Araújo exercer aqui a função de confeccionar e consertar sapatos, colaborando para a saúde, o conforto, a elegância e a distinção dos nobres moradores destas paragens.

Pelo jeito, naquela época ser sapateiro não significava exercer um ofício irrelevante nem economicamente pouco expressivo. Para conquistar a licença, Manoel de Araújo teve que apresentar fiador e se comprometer com o pagamento dos quinto reais e das taxas de almoçataria.

Mais de 70 anos depois, outro sapateiro Manuel, desta vez Manuel da Costa Capanema, foi réu citado nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, suspeito de fazer parte do grupo de conjurados.- 
- Por qual motivo?
- Porque mais de uma vez, em diferentes lugares, proferiu abertamente as seguintes palavras, ofensivas aos reinóis portugueses: "Estes branquinhos do reino, que nos querem tomar a terra, cedo os havemos de botar fora dela."

Até algumas décadas atrás muito populares em nossa cidade, as sapatarias de consertos eram soluções econômicas para deixar quase novos os velhos e preferidos sapatos. Naqueles espaços mágicos, geralmente instalados em porões, becos e esquinas, sapateiros simpáticos socorriam e salvavam surrados sapatos, colocando meia-sola, trocando o coro dos saltos, costurando, tingindo, engraxando e lustrando calçados que já estavam quase imprestáveis.

Hoje, estas sapatarias típicas, com seus experientes oficiais, são raras na paisagem urbana e humana de São João del-Rei. Mas para a felicidade geral da geração atual, duas delas ainda resistem e persistem, firmes como sentinelas, no centro histórico de nossa cidade - uma na rua do Carmo e outra no bequinho atrás da igreja do Rosário, quase esquina com o começo da Rua Santo Antônio.

Diferentes entre si em personalidade, espaço e arrumação, mas gêmeas no espírito que há 3 séculos caracteriza as sapatarias de conserto de nossa terra, elas têm em seu interior tudo o que caracteriza sua tricentenária origem: estante-prateleira, balcão, estampas de santo, pés de ferro, formas de madeira, cadarços pretos, brancos e coloridos, retalhos de couro e de borracha, tachinhas, saltos, tintas, graxas, pincéis, escovas, fivelas, flanelas...

O tempo passa, o mundo gira, a fila anda mas, para vencer tamanha distância e seguir o passo da velocidade, haja sola de sapato! Felizmente ainda temos em São João del-Rei, atrás de duas encantadoras igrejas, duas pitorescas e memoráveis sapatarias de conserto. Elas vieram de longe, de 1719, para, nostalgicamente, nos falar de outros tempos, de outras eras, de antigamente. E para garantir vida longa a velhos e preferidos sapatos, que pelos caminhos de nossa vida já andam quase sozinhos.

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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
Fontes: Sebastião Cintra - Efemérides de São João del-Rei - Vol. 1  2a edição
               Consultor Jurídico - Conheça o acórdão que levou um dos ícones da independência à forca
               Cecília Meireles - Romanceiro da Inconfidência

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