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Uma noite de serenidade, delicadeza e encantamento em São João del-Rei


Serenidade e delicadeza. Estas duas palavras são o espelho da noite do dia 14 de agosto em São João del-Rei. Uma noite suave e amena, às vezes fria, em que o centro histórico são-joanense parece envolvido por um silêncio de paz e coberto por um céu azul claro de nuvens tênues, que se movimentam lentamente, esgarçadas pela luz branca de uma lua cheia discreta e contemplativa.

Mas essa atmosfera de tanta beleza e calma certamente seria menos percebida, se não fosse nela que Nossa Senhora da Boa Morte sai às ruas de pedra e tempo, adormecida em seu esquife, enfeitado de flores claras e conduzido por padres vestidos de branco. Aliás, essa atmosfera talvez só exista, como presente do firmamento ao povo de São João del-Rei, para nela deslizar o cortejo que conduz Nossa Senhora.

Nesse momento, incapaz de ser medido na escala do tempo, por seu misterioso encantamento que funde, em uma mesma era, passado e eternidade, tudo é reticentemente mágico e sem-fim.

De tempos em tempos, no deslizar da procissão, o coro da Orquestra Lira Sanjoanense canta um moteto especialmente composto no século XVIII, por Manuel Dias de Oliveira. Assim, repete o que faz desde 1776 esta Orquestra, que é a mais antiga das Américas em atividade ininterrupta.

Os sinos da Matriz do Pilar, da igreja do Rosário, de São Francisco e do Carmo, à medida em que a procissão aproxima-se delas, repicam lânguidos o toque A Senhora é Morta. Dizem que este repique, tido como um dos mais belos do repertório sineiro local, foi criado por um negro escravizado  que chamava-se Francisco. Entretanto, os sinos tocam baixinho e cuidadosos este repique, como se não quisessem perturbar o sono de Nossa Senhora.

Também com o mesmo desejo, a centenária Banda Musical Theodoro de Faria, alternando-se com a Orquestra Lira Sanjoanense, toca carinhosamente a Marcha da Boa Morte - obra do grande maestro-compositor mulato são-joanense Luiz Baptista Lopes, que nasceu e viveu na cidade no século XIX. As notas musicais saem dos instrumentos como uma brisa, soprando ternamente pela noite uma marcha que, entretanto, soa como uma cantiga de ninar.

Cumprido o seu definitivo e derradeiro trajeto, Senhora da Boa Morte volta lentamente para a Matriz do Pilar, onde, despida da grande e bissecular coroa de prata, é depositada em seu sepulcro dourado. Sobre ele pousam então a coroa, ao som do moteto entoado pela Orquestra. Agora, sim, o silêncio é absoluto.

Mas o grande mistério desta noite vem em segredo. Depois que todos voltam para suas casas e nave da Matriz está vazia, Nossa Senhora da Boa Morte abre o sepulcro, e no altar-mor transmuta-se em Nossa Senhora da Assunção, sentada, apoiando os pés numa lua crescente de prata, levita sobre este mundo a subir para os mais altos céus. De tão natural e comedido encantamento e na originalidade espontânea de sua fé e santidade, deixa cair dos pés os sapatinhos de cetim azul claro, bordados com fio de ouro. Afinal, não precisará deles na morada celeste.

Isto só será revelado aos são-joanenses entre toques de sinos e foguetório, durante a missa solene que será concelebrada naquela igreja na manhã do dia seguinte, 15 de agosto...:

Sobre o mesmo tema, leia também https://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com/2011/08/sao-joao-del-rei-comecou-nesta-sexta.html

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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa


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