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Encomendação de Almas entrega música e oração aos mortos na noite de São João del-Rei


Tradição bicentenária de São João del-Rei, mantida com grande mistério até os dias atuais, as Encomendações de Almas são cortejos que, em hora próxima da meia-noite, percorre várias ruas da cidade, parando sete vezes em encruzilhadas, portões de cemitérios, cruzeiros e portas de igreja. Realizadas exclusivamente no tempo da Quaresma, no período da Festa de Passos, podem acontecer em três sextas-feiras consecutivas ou em uma única semana, em dias alternados - segunda, quarta e sexta-feira.

Lembrando rituais muito antigos, mais se parecem com enterros noturnos do que com procissões. Não é conduzida por padres, mas por um homem mais velho, respeitável e respeitado por todos, que puxa o terço durante todo o trajeto e, nas sete paradas de cada Encomendação, faz orações - ora em latim, ora em português - como a chamar as almas e entregar-lhes cantos, lembranças, lamentos e orações.

Nestas horas, ouve-se o bater da matraca e músicos executam os Motetos dos Passos, compostos há quase 200 anos pelo maestro Martiniano Ribeiro Bastos. A impressão que se tem é que flautas, clarinetas, contrabaixo, violoncelo e vozes embrulham sete recortes da noite com retalhos de veludo escuro. Por isso, em tempos passados, muitas lendas , mistérios e secretas magias envolviam estes rituais.

Pensando bem, por suas afinidades e semelhanças, não seriam as Encomendações de Almas de São João del-Rei o correspondente fúnebre das solenes vias sacras de rua, realizadas nas três primeiras sextas feiras da Quaresma na "terra onde os sinos falam"?

                Nona Estação*

         A matraca tocou e as cordas do enorme contrabaixo
         arranharam o silêncio das trevas.
         Flautas e clarinetas, com o sopro de sua música,
         tentaram apagar mais cedo o lume da vela,
         mas o tempo ensinou que todo começo
         só existe por causa do fim.

         O oficiante lança mensagens em latim,
         chamando os mortos de seu sono profundo,
         mas atrás do portão de ferro
         tudo continua como era o universo
         antes da criação do mundo.
        Apenas a memória está mais viva,
         mais densa, corporificou-se.

        Quem separou-se de alguém
        que do outro lado do chão ainda está quente
        corta a noite com soluços,
        embaça os olhos com saudade,
        mas não há resposta ao seu chamado.
        Só ausência...

        O cortejo escorre pelas ruas, para em encuzilhadas,
         onde os caminhos se encontram e se separam.
         Nos cruzeiros de pedra e culpa repete-se o mesmo ritual:
         - Senhor Deus, misericórdia!
         Mas do alto as almas tudo espiam com indiferença
         e não se manifestam com nenhum sinal.

         O relógio da eternidade não tem ponteiros.

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* Do folheto inédito A Paixão segundo São João (del-Rei)

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