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Cultura dinâmica: Saeta de sinos em São João del-Rei

Além da devoção ardorosa a Nossa Senhora do Pilar, padroeira do mundo hispânico e generosa madrinha de nossa cidade, existem muito mais afinidades entre São João del-Rei e a Espanha do que a gente imagina. E vemos que está a surgir aqui mais uma expressão de eloquente religiosidade, que tudo indica vai se consolidar e daqui a não muito tempo até será entendida como mais uma semelhança entre as procissões dos 'dois mundos'.

Sem dúvida, uma das maiores afinidades entre a cultura de São João del-Rei e a das antigas cidades espanholas é a grandiosidade das celebrações da Paixão de Cristo, que, tanto aqui quanto lá, são igualmente monumentais. Enquanto em nossa terra as celebrações envolvem cerimônias que acontecem dentro e fora das igrejas, com missas, ofícios, vias sacras, visitações, adorações, encenações que fazem parte de um teatro sagrado, em Madri, Segóvia, Toledo, Sevilha, Málaga e outras cidades, o destaque são as magníficas procissões, com enormes andores, num vasto e rico cortejo, que inclui costaleros, nazarenos e penitentes - tudo com absoluta pompa, solenidade, rigor quase oficial.

Tanto aqui, quanto lá, as procissões são cadenciadas por uma banda de música, mas é com outro componente musical que elas se diferenciam. Lá, é comum, esparsamente, no trajeto da procissão, surgir um/a cantante de alguma sacada e entoar um canto longo e lamentoso de penitência, perdão, arrependimento, piedade. É a famosa "saeta".  Com muito boa vontade, podemos vislumbrar na saeta, bem de longe, um vestígio que nos fizesse lembrar Verônica.

Já aqui, além da música barroca setecentista e oitocentista que faz parte das celebrações internas, um coro de vozes geralmente integra o cortejo das procissões, e canta várias vezes durante o percurso. Na Procissão do Senhor Morto, por exemplo, a Verônica, com seu canto e seu sudário, onde foi estampada em sangure a face de Cristo, é uma atração à parte. Em todo o Brasil, mas especialmente em São João del-Rei, pelo cuidado, sofisticação e requinte, temos os figurados que, de Adão e Eva até o centurião, a guarda romana, Nicodemos e José de Arimatéa, passando por Abraão, Isaac, o menino Davi, o rei Salomão, Sansão e Dalila, Moisés e os profetas, nos contam os principais capítulos da história cristã, da criação do mundo até a morte de Cristo.

Este ano, por três ocasiões e em 3 lugares distintos, uma manifestação diferente foi notada, nas procissões de Corpus Christi, Santo Antônio e Nossa Senhora do Carmo. Durante a passagem dos cortejos, se ouviu tocar pequenos sinos na sacada e em janelas de um sobrado na Rua Marechal Deodoro, Rua Maestro Telêmaco Neves e Rua General Osório. Miniaturas pequenas e médias dos sinos das torres das igrejas, estes instrumentos giravam em torno de seus eixos, movimentados por crianças e jovens, apaixonados pelo "som do bronze"..

Certamente não muitas pessoas viram algo de importante nesta novidade, mas ela é significativa e pode ser sinal de que um novo elemento está surgindo na expressão espontânea da religiosidade de São João del-Rei. Algo tão importante quanto o costume de enfeitar sacadas e janelas com toalhas e colchas de crochê e renda e jarros de flores, para a passagem das procissões.

A se consolidarem e ganharem maior dimensão e visibilidade, pode ser que não tarde o dia em que, a partir de uma visão aberta e abrangente, entendamos a manifestação do toque dos sinos-miniatura nas janelas como algo tão significativo e expressivo como se fosse uma saeta são-joanse. Afinal, São João del-Rei é a terra em que os sinos falam. E quem fala canta. E quem canta os males espanta...

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Foto e texto: Antonio Emilio da Costa
 

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