Quando o assunto é cultura, em seu sentido mais genuinamente antropológico, São João del-Rei é uma das cidades históricas brasileiras mais ricas e mais dinâmicas. Seu conjunto arquitetônico não é uniforme nem homogêneo, mas o que isto importa? Seu casario de estilos diversos, característicos de sucessivas épocas, registra em si, como em nenhuma outra cidade histórica mineira, a passagem dos séculos com seus ciclos de evolução econômica, estética e social.
Tão ou mais do que outras cidades surgidas no tempo do ouro, a cultura local é autêntica e peculiar, e mantém-se viva de modo natural e espontâneo. Tanto que, por não se pautar na realização de eventos de inspiração e motivação externa, para um público "estrangeiro", há quem diga, desavisadamente, que em São João del-Rei não se promove cultura. Mas dependendo do ponto de vista e do que se tem como cultura, quem pensa assim não está de todo errado, por uma razão muito simples: São João del-Rei "não vive de cultura", mas é uma cidade que "vive a cultura".
E este viver "a" cultura, ao mesmo tempo em que garante aqui a preservação e manutenção de tradições imateriais setecentistas e oitocentistas, permite e estimula que o espírito e a estética barrocos, por meio da fé e da religiosidade popular, constantemente se instalem e se façam presentes em espaços urbanos muito diversos. Prova disto são a eventual edificação de novas grutas votivas, geralmente dedicadas a Nossa Senhora, e de novos cruzeiros, um dos quais, recentemente, assumiu a condição de imponente monumento, na antiga e outrora colonial Rua do Barro - atual Rua Coronel Tamarindo.
Erigido há poucos anos, como uma cruz simples, sem os estigmas da Paixão que caracterizam os tradicionais cruzeiros da Penitência de nossa terra, recentemente o marco de fé foi transformado em um grande crucifixo, agora com a imagem trágica de um Cristo agonizante, a instantes da morte, talvez entre uma ou outra das sete finais palavras. Sobre ele, pousado no ar, em forma de pomba branca, o Espírito Santo, tal qual pousou na hora de seu batismo, por João Batista, no Rio Jordão.
A dramaticidade sobrecarregada daquele monumento, forte expressão do barroco popular, impressiona todo mundo que passa por ali. Traz à memória o Ofício de Trevas, o Sermão das Sete Palavras, o Canto da Paixão, a adoração e o descendimento da Cruz. Traz ao olfato o cheiro do rosmaninho, da arnica, do incenso e do manjericão. E também do algodão doce, do quebra-queixo, da pipoca, do amendoim torrado, da pururuca, vendidos nas praças nos dias de procissão.
Transforma a Rua do Barro em imaginário Calvário, com Adão e Eva, Abrahão e Isaac, Moisés, Noé e sua arca, os profetas, Rei Salomão, a Rainha de Sabá, Judith, o Rei Davi, Salomé com a cabeça de João Batista, os apóstolos, a Verônica, o centurião e os soldados romanos - enfim, todas as figuras legendárias do Velho Testamento, que escorrem como um rio no cortejo da Procissão do Senhor Morto de São João del-Rei.
Faz qualquer dia da semana, de qualquer mês, a qualquer hora, virar Sexta-Feira da Paixão.
Milagres acontecem em São João del-Rei. A toda hora. O tempo todo. Em todo lugar. Quem faz é a cultura viva, que não se tem tão viva, em nenhuma outra cidade histórica de Minas Gerais!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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