Longo e sagrado é o caminho da Paixão de Cristo em São João del-Rei. Para percorrê-lo, é preciso mais de 40 dias e incontáveis horas, em que os são-joanenses, contritos e saudosos, refletem, rezam e cantam em memória das angústias, flagelos, humilhações e sofrimentos que há 2 mil anos culminaram no Monte Calvário, com a crucificação e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Este ritual de memória, tradição e fé se cumpre através das Vias Sacras e das Encomendações de Almas, que são realizadas há quase 3 séculos em nossa cidade, da Quarta Feira de Cinzas até a Terça Feira da Semana Santa, véspera da Quarta Feira de Trevas. Talvez não seja errado pensar que pelo menos parte deste exercício religioso tenha se iniciado antes, e quem sabe até mesmo demandado, a criação da Irmandade dos Passos são-joanense, que foi instituída em 1733, ou seja, há exatos 290 anos.
As Vias Sacras são diárias, em sua maioria acontecem dentro das igrejas barrocas do centro histórico, promovidas pelas irmandades, confrarias, arquiconfrarias e ordens terceiras, de acordo com um calendário semanal pré-estabelecido. Algumas delas, inclusive, têm a participação das orquestras Lira Sanjoanense e Ribeiro Bastos, executando um repertório tradicional, composto nos séculos 18 e 19.
Além destas, nas 3 primeiras sextas feiras da Quaresma, seguintes ao Carnaval, acontecem as Vias Sacras Solenes, promovidas pela Irmandade dos Passos. Elas percorrem algumas ruas do centro histórico, num percurso marcado pelas capelas-passo, onde reverenciam com cantos e rezas uma cena marcante da Paixão de Cristo. Conhecidas em São João del-Rei como passinhos, na verdade as capelas-passos são grandes oratórios de bonita fachada esculpida em pedra, grande porta vermelha e interior decorado com entalhes, pinturas, douramentos, toalhas bordadas, flores, velas e uma imagem do Senhor dos Passos com a cruz às costas.
A contemplação dos passinhos é enternecedora, sobretudo pela delicadeza singela que mora no interior de cada um daqueles pequenos espaços e está viva até no cuidado de quem se dedicou a prepará-lo para o cortejo. A pessoa que escolheu as toalhas brancas, o forro roxo, as jarras e as flores que enfeitam aqueles oratórios, enfim, quem se doou naquele ato e ofereceu ali, para todos, seu cuidado, gentileza e dedicação.
Ainda nas mesmas sextas feiras das Vias Sacras Solenes, a partir das onze horas da noite, acontecem as 3 Encomendações de Almas, que também são tradições setecentistas de São João del-Rei. Neste ritual tricentenário, o cortejo faz 7 paradas em cemitérios, cruzeiros, encruzilhadas e portas de igreja, onde interrompe a oração do terço para, entre um e outro toque da matraca, a Orquestra Lira Sanjoanense executar os mesmos motetos barrocos da Via Sacra Solene. Entre os cantos, são feitas orações pelas almas dos mortos, em especial as dos músicos sepultados naquele cemitério, muitos dos quais, em outros tempos, participaram das corporações musicais são-joanenses. Como não tem a presença de um sacerdote, a Encomendação de Almas é presidida pelo maestro da orquestra.
Antigamente, lendas tenebrosas e crendices assustadoras envolviam as Encomendações de Almas, certamente porque o cortejo parava, a horas desertas, em locais que acreditavam ser ligação entre dois mundos: o dos vivos e o dos mortos. Mas de umas décadas para cá, as Encomendações de Almas passaram a conviver, harmonicamente, com o movimento e o barulho do trânsito de motos, carros e ônibus, com a agitação dos bares cheios, trabalhadores que voltam para casa, enfim com a vida noturna de uma cidade média em noite de sexta feira. Porem, quando interrompe seu caminhar para o diálogo com o sagrado, o cortejo cria em torno de si um campo de isolamento e neutralidade, que protege os participantes de qualquer dispersão provocada pelo barulho e pelos apelos do mundo ao redor. Naqueles momentos, tem-se a impressão de que, ali, São João del-Rei volta um século no tempo.
Além das tradicionais Vias Sacras Solenes, das Vias Sacras internas, e das Encomendações de Almas, ainda são realizadas também Vias Sacras vespertinas ou noturnas em algumas comunidades, como Rua Padre Faustino / Bica da Prata, Cruzeiro do Pau D'Angá, Rua das Flores, Rua do Ouro, Alto das Mercês e outras. Elas têm caráter mais espontâneo, menos formal e mais popular, preservando porém a solenidade e a seriedade do ato religioso.
A cerimônia é precedida de uma missa a céu aberto e as estações são montadas nas janelas de alguns moradores das ruas percorridas, com jarros de flores, colhidas no jardim doméstico ou artificiais, velas acesas, crucifixos, imagens de gesso ou estampas do Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora Aparecida, ou, ainda, pequenos bâneres distribuídos pelo vizinho coordenador. O Padre oficiante puxa o terço e em cada janela-estação é o dono ou a dona da casa que, na frente de seu lar, faz a leitura do texto correspondente e dá início à oração que é repetida por todos.
Nestas vias sacras, fica muito visível como é forte, pelo menos naquele momento, o sentimento de pertencimento de cada morador àquela sua comunidade e àquela sua religiosidade. Ele não é somente um partícipe-espectador, mas também se percebe e é reconhecido por todos como um agente ativo, um protagonista e um realizador, diante dos seus e de Deus.
Milagres pequeninos mas muito significativos e engrandecedores, que acontecem no longo, espinhoso e sagrado caminho da Paixão de Cristo em São João del-Rei!
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Texto de foto: Antonio Emilio da Costa
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