Em São João del-Rei, a Quaresma não é apenas uma véspera de 40 dias dos feriados da Semana Santa. Para muitos são-joanenses, é uma experiência que se vivencia em um campo emocional, sentimental e transcendental, onde o divino e o humano se postam no mesmo plano, e em mútua compaixão. Isto é o que torna tão verdadeiras, genuínas, tradicionais e cultural-religiosamente ricas as memoráveis celebrações da Paixão de Cristo em São João del-Rei.
Das Vias Sacras às Encomendações de Almas, das rasouras às procissões, dos ofícios ao Te Deum Laudamus. Em tudo transparece a verdade absoluta de cada olhar que trocam entre si o humano e o sagrado. Do mesmo modo, cada gesto, cada ato, cada passo e cada palavra são contidos, cuidadosos, precisos, atentos, exatos, zelosos, respeitosos, responsáveis e delicados, como os de quem carrega, em suas mãos, lado a lado, 2 corações: o seu, próprio, e o de Jesus.
Em todas as celebrações, o que, por sua perfeição e esmero, é encantadoramente espetacular, não faz, contudo, da Semana Santa de São João del-Rei, para os são-joanenses, um espetáculo. Assim como também não o faz para os turistas e visitantes que alcançam ver o contexto vivo, religioso, social e humano e a ambiência destas realizações, que se repetem há 300 anos. Graças a Deus!...
Isto porque é a genuína religiosidade que abre as portas da memória para resgatar lembranças afetivas e sentimentais, que se viveu, ou que se quis viver, ou que aqui viveram por nós, em tempos passados, nossos antepassados: pais, avós, bisavós... É a religiosidade viva e autêntica que permite, por alguns momentos, transportar-se para um tempo e um lugar, além do cotidiano e do próprio mundo, e nele vivenciar a comunhão com o que é divino - coisa que, de outro modo, não seria possível.
Os são-joanenses de ontem, por exemplo, não iam à Procissão do Encontro. Eles diziam ir "acompanhar" o Senhor dos Passos ou Nossa Senhora das Dores, explicitando o significado participativo da ação.
Os são-joanenses de hoje, jovens em sua maioria, não vão simplesmente à Procissão do Fogaréu. Eles vão a este cortejo para ver a prisão do Cristo Cativo, na porta da igreja de São Francisco, e sua desolada trajetória até a escuridão dos jardins da capela da Santa Casa, de onde saíram os penitentes farricocos. Vão para ser testemunhas vivas de um fato crucial da história sagrada que é relembrada e representada, tornando-a, assim, pelo testemunho, revivida.
Por mais teatrais que possam parecer certos momentos de algumas celebrações, é certa a inclusão e participação de todos que ali estão presentes e atuantes das formas mais diversas. Seja beijando o crucifixo conduzido nas Vias Sacras, passando três vezes sob a cruz do Senhor dos Passos no sentido anti-horário, batendo os pés com força no chão, quando as luzes da Matriz se apagam ao final dos Ofícios de Trevas.
Seja levando para casa arnica obtida nas igrejas na Quinta Feira Santa, trocando alguma moeda nas salvas de prata que passam com o crucificado na Adoração da Cruz ou ficam ao lado do Senhor Morto, nos minutos quando ele fica exposto à veneração, terminada a Procissão do Enterro. Muitas vezes atribuem a estas moedas o poder de um amuleto, certamente porque elas funcionam como um objeto de fixação da memória e resgate da emoção que aflorou e do sentimento que tomou conta de quem fez a troca naquele instante de religioso fervor. Diante do perigo, o que pode ter mais força do que a fé e o desejo?
Também acendendo e apagando as velas pessoais, durante vários momentos da Vigília Pascal - quem está presente em alguma celebração nunca se posta nem se percebe como plateia. É sempre um partícipe, um agente, um sujeito ativo, um protagonista para si daquela história sacro-fantástica, o que naquele momento faz dela a sua própria história.
A Semana Santa, assim como a vida, nem quando é espetacular, é um espetáculo em São João del-Rei!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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