Pela formação colonial-barroca da cultura são-joanense, mesmo sob a ilusória égide da temperança, da serenidade e da discrição mineira, aqui em São João del-Rei tudo é exacerbado, extremado, monumentalizado. Independentemente se são o idílio ou o inferno, o sagrado ou profano, o luto ou o gozo, a alegria ou o sofrimento. Quando não as duas coisas ao mesmo tempo.
Porta de entrada deste mundo para o outro, a Morte é um eixo importante e presente em quase todas as manifestações culturais são-joanenses, sejam elas expressões coletivas, celebradas no mundo da rua, ou vivências individuais, que acontecem entre as paredes cobertas pelo telhado de um lar.
No primeiro caso, como em geral são ocasiões festivas, programadas para a coletividade rememorar, viver ou reviver situações simbólicas, consagradas e preservadas como tradição, o passar do tempo não foi suficiente para modificá-las tanto. Isto porque, mesmo veladamente ou inconscientemente, elas têm uma finalidade - e até mesmo uma função comportamental ou doutrinária - socialmente e muito definida e útil para a manutenção do status quo.
Já no segundo caso, a história é outra. A urbanização, o progresso, a tecnologia e a modernidade impuseram novos valores, alteraram os costumes, modificaram as condições e o modo de vida, exigindo da comunidade e de cada indivíduo novas visões e percepções, novas posturas, novos posicionamentos e comportamentos.
Voltando então para aquele "eixo importante" em torno do qual giram expressivamente as manifestações culturais de nossa cidade, no âmbito do universo privado ele se modificou completamente em relação ao que era há cem, noventa, oitenta anos atrás.
Carmen Trindade da Costa, minha mãe e informante, hoje com 92 anos, lembra muito bem que, no tempo em que ela era criança, a morte - e tudo o que a rodeava! - era verdadeiramente uma coisa do outro mundo. Aos adultos, causava desolação, desequilíbrio emocional e desespero. Às crianças amedrontava e aterrorizava, gerando um imaginário passional e indomável de pavor e mistério, que as acompanharia até o fim da vida. Tudo era bastante intenso e muito dramático, protagonizado principalmente pela família, e acontecia no ambiente do lar onde o ente querido estava deixando a existência. Afinal, grande parte dos óbitos ocorria em casa, presenciado por membros do grupo familiar.
Como o conceito de UTI que hoje conhecemos ainda não havia chegado ao interior do Brasil, esgotados os recursos da medicina, que não eram tantos assim, somente o sobrenatural, invocado por meio da religião e/ou das crenças populares, poderia premiar o moribundo com a recuperação plena ou com uma passagem tranquila.
Por isso, quando a situação se agravava bastante, buscavam o padre, que ministrava a "extrema" unção, e intensificavam-se as rezas do terço e de outras orações, estas, inclusive, com a finalidade de abreviar o sofrimento e convencer o doente, às vezes já em coma, a despedir-se logo da terra e seguir seu caminho pelos séculos amém. E, não muito raramente, o sino da respectiva irmandade tocava a Agonia, informando que alguém já estava "nas últimas" horas.
Se nada disso resolvesse, a penúria continuasse e a vida insistisse em permanecer naquele corpo, muitas vezes ainda apelavam para um recurso derradeiro: a mulher mais idosa, mais respeitada e mais importante do grupo fazia um emplastro de marmelada com canela e colocava sobre o umbigo do agonizante. E deixavam por perto a vela acesa e o crucifixo que seriam colocados nas mãos do viajante na hora do último suspiro, quando se rezaria o ato de contrição "Senhor meu Jesus Cristo, deus e homem verdadeiro..." ou outra oração apropriada. Aí, era esperar para ver!
Como a crença, a fé e a magia não se explica, nunca disseram a ela porquê o curioso emplastro tem esse poder!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
Informante: Carmen Trindade da Costa
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