Em São João del-Rei, Mãe do Ouro fez estrela virar pepita e dragão virar serpente no fundo Rio Jordão
Quem anda por São João del-Rei se encanta com a paisagem urbana. Seus casarios, suas pontes, seus largos, seus jardins, suas escadarias, balaústres e monumentos.
Se encanta com a paisagem religiosa. Suas procissões, suas novenas, seus ritos, seus ofícios, responsórios, antífonas, Te Deum's. Suas igrejas, seus anjos, seus santos, suas portadas e suas torres.
Se encanta com sua paisagem sonora. Seus toques de sino, dobres, tencões, terentenas, tens-tens, floreados, repicados, canjica queimou. Seus sons de orquestra, violinos, violas, bombardinos, trompetes, trompas, trombones, flautas, vozes. Seus toques de banda, dobrados, marchas. Seus apitos do trem, das fábricas, com o estrelamento ruidoso e brilhante de seus foguetórios...
- Mas e a paisagem humana de São João del-Rei, o que ela nos mostra?
- Ora, muito mais do que a gente imagina!
A paisagem humana de São João del-Rei é feita de tempo, de sonho, imaginação e sentimento. Ela está em toda parte. O tempo todo. É só você parar, se interessar, ir se chegando devagar e dar ouvido a um "mais velho". Ele tem muita história pra contar.
Algumas você já ouviu tanto que até sabe de cor, mas tem outras, muito antigas, que se engastaram entre uma e outra geração e quase não conta mais em nosso tempo.
Como por exemplo a da serpente que dorme no Rio Jordão, que passa debaixo da igreja do Carmo. Se ela acordar, o mundo acaba...
Nossa Mãe do Ouro fez estrela virar pepita,
dragão virar serpente, e subiu ao Céu numa lua de prata
- Mãe do Ouro em São João del-Rei? Uai, sô! Não, sô moço, nunca ouvi falar disso
não...
- Hã?! Aquela que para uns mostrava, e para outros embaraçava e escondia os
caminhos que levam onde muito ouro estava dormindo, e ainda hoje dorme feito pedra
desde que Deus criou o mundo? Não! Desconheço essa conversa...
- Quem? Aquela que ainda hoje guarda, de dia e de noite toma conta da entrada das betas. A mesma que antigamente botava pintas de ouro no cristal branco que descia no
Córrego do Lenheiro e nas enxurradas, e da água saíam como areia dourada para o fundo
das bateias dos garimpeiros? Sei não...
- Como? Aquela que ajudou os emboabas a escorraçarem os
paulistas na guerra medonha que aconteceu aqui em 1709, quando foi queimado todo o Arraial do Rio das Mortes, até a capelinha de Nossa Senhora do Pilar?
Ora moço, como é que eu vou saber? Ainda não tinha nascido. Só sei que correu muito sangue...
- Cá entre nós, tudo o que eu sei, ouvi na Festa da Boa Morte. Nos
sermões do dia 15 de agosto, nas músicas muito antigas que a Orquestra Lira
Sanjoanense toca na missa das 10, quando o altar dourado da Matriz do Pilar
abre, para Nossa Senhora da Assunção subir aos Céus em nuvens de incenso
cheiroso. Uma beleza!
- Neste dia, o padre sempre conta de um tal de Apocalipse.
Parece que ele escreveu um livro, falando de um dragão que existia no céu e que
ficou furioso, quando viu uma mulher bonita como a lua, brilhante como o sol,
terrível como um exército em campo de batalha.
Tão brabo ele ficou que cuspiu brasa, soprou fogo, quis devorar crianças e derrubou
com o rabo metade das estrelas, que do céu caíram na terra. Mas não adiantou
nada...
- Dizem que aqui em São João as estrelas viraram ouro , amarelinho-amarelinho, na Serra do Lenheiro. Por castigo, a mulher luminosa transformou o dragão em uma serpente, e
prendeu no fundo do Rio Jordão, que passa debaixo da igreja do Carmo. O Rio
Jordão, o senhor sabe, nasce lá pelos lados do Oriente e foi nas águas dele que
São João Batista batizou Jesus Cristo, não é mesmo? São João Batista também veio para cá. Está lá no batistério da igreja do Pilar.
- Olha, só se a mulher que transformou as estrelas em
pepitas de outro e fez o dragão virar a serpente que dormindo e presa no fundo
do nosso Rio Jordão, for essa tal Mãe do Ouro.
- Quem sabe ela não é também aquela mulher bonita, pisando
descalça sobre a lua crescente de prata e com um diadema de estrelas, que sai
em procissão e atravessa os becos e as pontes de pedra no entardecer do dia 15
de agosto? Ela mesma, a que misteriosamente também vai num outro andor logo
atrás e é coroada por Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo...
- Mas não conta pra ninguém isto não, moço! Nesse dia os
sinos tocam muito. Muitos foguetes coloridos estouram no céu. É muito barulho. Se a serpente que
dorme há muitos séculos acordar, como dizia minha bisavó, o mundo acaba...
Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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