Pular para o conteúdo principal

Tesouros vivos de São João del-Rei - Ulisses Passarelli: garimpeiro de congadas e folias!


Na história de São João del-Rei, ouro é o que não falta. Ouro, do mais puro e mais reluzente, outrora catado em meio a raízes de capim, colhido em bateias, faiscado em veios de profundas betas e subterrâneas galerias. Dele brotaram altares de ouro, anjos de ouro, amuletos de ouro, alianças de ouro, corações de ouro, crucifixos de ouro, correntes de ouro... Metal cobiçado, há muito tempo este ouro esgotou-se das encostas são-joanenses.

Mas daqueles tempos distantes e para sempre, existe outra riqueza viva e inesgotável nesta terra em que os sinos falam, mais brilhante e valiosa do que o ouro de outrora, que alimentou violências, ganâncias e castigos e emoldurou barrocos ideais. Esta outra riqueza é tão grande, tão vibrante e tão intensa que não pode ser congelada em templos nem em museus. Ela pulsa, corre no sangue, anima a fé e várias crenças, impulsiona, dá ritmo, resgata, recria e perpetua cantos, danças, ritos, rezas, orações, preces, mandingas, festejos. Em termos humanos mais valiosa do que o ouro, sem dúvida ela é o sal da terra, a doçura da cana e do mel, o calor do sol e do corpo,  a luz da lua e do mundo. Que maravilha é esta? Ora, é a cultura popular!

Pouca gente sabe, mas em São João del-Rei existe um garimpeiro que, encantado por esta riqueza, já há mais de uma década vem se dedicando a descobrí-la, resgatá-la, revelá-la, vivificá-la e, no que pode, alimentá-la, seja com a própria participação, seja com estímulo, incentivo e apoio, seja com sua capacidade cognitiva de registrá-la, gerando documentos que, além de fontes para estudos, são também referências para tempos futuros. Seu nome é Ulisses Passarelli.

Dentista por formação, umbandista de religião, folclorista por vocação, humanista com dedicação, membro da Academia de Letras de São João del-Rei e com atuação relevante em outras instituições culturais da cidade, o currículo de Ulisses Passarelli é vasto, mas modesto como ele é, certamente se incomodará bastante até com este pouco que é dito aqui. Porém, a vida que Ulisses dedica à cultura popular de São João del-Rei e região fala por si e bem mais do que qualquer explanação. Basta assistir suas palestras e conferências, ler os artigos que ele escreve, acessar seus blogs Tradições Populares das Vertentes; Matosinhos: história & festas e Festa do Divino SJDR, assim como assistir os vídeos que ele produz e divulga no Youtube.

Entretanto, seria uma grande injustiça, e ao mesmo tempo um erro grosseiro e imperdoável, falar de Ulisses Passarelli e não mencionar sua importância no resgate da Festa do Divino de Matosinhos e sua participação direta nas Folias de Reis, onde eventualmente incorpora o enigmático Bastião, e no incentivo aos grupos são-joanenses de Congada - ele participa do grupo Embaixada Santa.

Mais do que as ruas estreitas, ingremes, sinuosas  e de pedras de São João del-Rei, mesmo sem transpor as muralhas de pedra e séculos da Serra do Lenheiro, é o mundo o que Ulisses percorre e atravessa em sua bicicleta. Nesta travessia, seguindo sempre o coração e a estrela guia, ele vai conhecendo o joio e o trigo cultural, valorizando cada qual por seu papel e por sua importância. Afinal, tudo serve e tem função.

Diferentemente do herói grego que em mar bravio se amarrou ao mastro do barco e tapou com cera os ouvidos para não ouvir e ser seduzido pelo canto das sereias, nosso garimpeiro são-joanense é livre. Vai sem medo a toda parte, ouve todos os cantos e rezas, vê o que a alma do povo sente e, tal qual o cigano-mágico Melquíades - transculturador de Macondo, apresentado por Gabriel Garcia Marquez em Cem Anos de Solidão - traz para o universo urbano e barroco de São João del-Rei a riqueza do telúrico universo simbólico do Campo das Vertentes, criada e mantida por séculos no alto dos morros, atrás das serras, nas ruas sem placa, nos becos sem saída, do outro lado das porteiras, em volta dos cruzeiros, em todos os cantos que cheiram a alecrim do campo, a arruda e guiné, a rosmaninho, a manjericão; que têm gosto de gabiroba, de goiabada, de taioba, de torresmo, de tudo o que brota ou que se faz a esmo, e mais, de tudo o que nasce no coração.

Texto: Antonio Emilio da Costa




Comentários

  1. Prezado Emílio: suas palavras vem recheadas de tantos elogios de que não sou merecedor que só os posso atribuir à extrema bondade que reconhecidamente a sua alma se reveste. Faltam palavras suficientemente eloquentes para manifestar a totalidade de minha gratidão à sua homenagem, que repito, exagera sobre a qualidade de meu trabalho.
    Esta homenagem enche-me de ânimo para prosseguir as pesquisas, o trabalho de defesa e a valorização da cultura popular, que verdadeiramente trago comigo de forma muito afetiva, sobretudo quando canto, danço ou rezo nas congadas e folias.
    Aproveito o ensejo para retribuir e enaltecer a qualidade deste almanaque,"Tencões e Terentenas", este sim, tal e qual seu mentor, merecedores do título de tesouros vivos desta cidade.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ulisses, sem confetes nem culto a vaidades, este registro é insignificante diante da grandeza de sua atuação e produção sobre folclore e cultura popular, sobretudo de nossa região. Grande abraço!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j