Até quem não é nativo, ou mesmo os são-joanenses alheios às tradições e à identidade local - enfim, qualquer pessoa que nestes dias transitar pelo centro histórico ou pelos bairros mais antigos da cidade - vai notar algo diferente no ar. Atmosfera mais densa, clima espesso e misterioso, ecos da reza de algum terço, esgarçado e trazido entrecortado e de longe pelo vento, dobre longo, solitário e choroso de um sino, expectativa contraditória quanto à Paixão e à compaixão, à dor e ao gozo, à festa que é sofrimento.
O silêncio conversa nas esquinas, nas pontes, nas encruzilhadas, nos largos e seus cruzeiros. Espreita das janelas de guilhotinas, escorre nas pedras do chão, escorrega, sorrateiro, pelas bicas dos telhados. Conversa com as pessoas que passam, com suas memórias, lembranças e pensamentos.
À noite, tem Via Sacra solene. A cruz negra com o lençol branco, puxa apressada um cortejo de homens e mulheres, com terço na mão e recitação sussurrada entre os lábios. Elevado, entre eles, também vai um agonizante crucificado, padres e, atrás dessa instituição, o povo, volitivo e espontâneo.
Por mais que se vá todo ano, toda Via Sacra de rua é como se fosse a primeira. A solenidade dos irmãos franciscanos, recebendo o crucifixo na entrada do maravilhoso templo e o devolvendo aos irmãos dos Passos, findo o rito de orações e motetos barrocos.
A admiração e o encantamento se repetem e se renovam diante de cada um dos cinco 'passinhos', todos enfeitados com simplicidade, intimidade e muito afeto. Acariciados dessa beleza verdadeira, corajosa, autêntica e singela, inspiram imaginar "como deve ser o lado de dentro do coração de Jesus", como tempos atrás escreveu certo poeta.
"Se o tempo não permitir" que esse cortejo de religiosidade e tradição percorra as ruas do centro histórico, a Via Sacra solene acontece entre os altares dourados da Matriz do Pilar. Com a mesma cruz-estandarte e o mesmo crucificado, erguido como a serpente de cobre elevada por Moisés no deserto, para dar alívio aos israelitas, picados pelas cobras, mandadas por Deus para castigá-los, por terem reclamado da sorte e desprezado o maná que caia do céu. Com os mesmos padres, a mesma orquestra, os mesmos motetos, os mesmos irmãos dos Passos e o mesmo povo...
No mesmo dia das três Via Sacras solenes, nas três primeiras sextas-feiras da Quaresma, o centro histórico de São João del-Rei, pela segunda vez, emocionalmente se adensa e quase se perturba por volta da meia-noite. Hora antes, começa a Encomendação de Almas, que percorre portões de cemitérios, cruzeiros, encruzilhadas, portas de igrejas, cantando e rezando pelos mortos. São sete paradas, em locais de grande energia transcedental e religiosa - portais que unem, portões que separam dois mundos: o dos vivos e o dos mortos.
Assim como vão chegando discretamente de todos os lados para acompanhar as tradicionais encomendações, as pessoas se dispersam e se dissipam na noite, logo depois que a matraca toca pela última vez. Coisas de São João del-Rei!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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