Pular para o conteúdo principal

No Carnaval de São João del-Rei tem a Bandalheira do bem!


Se São João del-Rei, por sua infinita riqueza sonora e musical, deseja ser consagrada também como "terra da música", nada mais certo do que seu carnaval - efetivamente - começar com uma banda: a Bandalheira!

Na verdade, a Bandalheira é bem mais do que uma banda, e do que um bloco carnavalesco. Com suas tantas décadas de existência, ela é mesmo uma corporação. Um sentimento que vive adormecido durante um ano inteiro para, na tarde do sábado que antecede o sábado de carnaval, corporificar-se por algumas horas, exalando alegria, samba, marchinhas e amizade, conforme declaravam seus estandartes este ano.

Na Bandalheira, democraticamente, há igual espaço para todos, independentemente da idade, sexo, raça, religião, condição social ou econômica e qualquer outro tipo de diferença. Desse modo, como toda e qualquer ação humana, seu cortejo é um ato político em favor da alegria, da fraternidade, do respeito humano e da igualdade. Tanto que as marchinhas e sambas que a banda tocava e o povo cantava, nenhuma delas tinha insinuação racista, sexista, misógena, homofóbica ou xenofóbica. Demonstração de soberana evolução no país em que hoje vivemos, sobretudo em tempo de carnaval.

Prova da igualdade citada, esse ano, para quem assistia da calçada a passagem da Bandalheira, quem mais se destacou foi um homem de meia idade que, entre uma e outra latinha de alumínio que catava do chão, sambava magistralmente, compenetrado e feliz, com elegâncias de mestre-sala e requintes de Zé Pelintra. Entre os foliões bandalheiros, além de latinhas, ele catava sorrisos e retribuia com sua alegria e com a leveza de seu samba solitário e impecável. Por coincidência ou ironia, ele tinha estampada, nas costas de sua camisa verde, o nome de um analgésico - Dorflex. Quer sedativo melhor do que a felicidade?, pensei comigo.

Pacíficos, alegres, gentis, conscientes e respeitosos, bandalheiros & bandalheiras viram a tarde cair azul entre a Ponte do Rosário e a Ponte da Cadeia. Ali, bem na esquina da Rua da Prata, um casal mais vivido, desinibido pela mistura do whisky com o maduro e grisalho amor, não se conteve em um beijo demorado, que os fez perder o compasso e o ritmo daquele rio de gente que seguia na mesma direção e velocidade que o Córrego do Lenheiro. Percebi então que na Bandalheira 2020 teve espaço pro afeto, pro amor e pra paixão, sem a condenação moral da idade...

Além dos sonhos pessoais e de um apache perdido, nenhuma fantasia no corpo dos foliões. Uma cigana, baiana, havaiana, rumbeira, espanhola, melindrosa, fada. Nada. Nenhum pirata, marinheiro, diabo, presidiário, índio, árabe, astronauta, escafandrista ou faquir dava humor e irreverência ao cortejo. Sequer criança idiotamente vestida de super-herói. Fantasiar-se dá mais cor, imaginação e liberdade à festa e por isso faz falta, mas também esse ano não teve. Deve ser porque nossa amarga realidade não é pra amador nem brinca carnaval. Bobeou, perdeu!, dançou!

Anoiteceu, acabou-se a Bandalheira 2020 e, como se diz em São João del-Rei ao fim de tudo o que é muito bom, "agora só no ano que vem!"

Que os outros blocos se mirem na Bandalheira e proporcionem aos são-joanenses e visitantes oportunidades de encontros e reencontros, amizade, harmonia, promessas, fraternidade, alegria e alívio pelas agruras, perrengues e aperreios do dia a dia!

..............................................................................
Texto e foto: Antonio Emilio da Costa

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j