Na verdade, a Bandalheira é bem mais do que uma banda, e do que um bloco carnavalesco. Com suas tantas décadas de existência, ela é mesmo uma corporação. Um sentimento que vive adormecido durante um ano inteiro para, na tarde do sábado que antecede o sábado de carnaval, corporificar-se por algumas horas, exalando alegria, samba, marchinhas e amizade, conforme declaravam seus estandartes este ano.
Na Bandalheira, democraticamente, há igual espaço para todos, independentemente da idade, sexo, raça, religião, condição social ou econômica e qualquer outro tipo de diferença. Desse modo, como toda e qualquer ação humana, seu cortejo é um ato político em favor da alegria, da fraternidade, do respeito humano e da igualdade. Tanto que as marchinhas e sambas que a banda tocava e o povo cantava, nenhuma delas tinha insinuação racista, sexista, misógena, homofóbica ou xenofóbica. Demonstração de soberana evolução no país em que hoje vivemos, sobretudo em tempo de carnaval.
Prova da igualdade citada, esse ano, para quem assistia da calçada a passagem da Bandalheira, quem mais se destacou foi um homem de meia idade que, entre uma e outra latinha de alumínio que catava do chão, sambava magistralmente, compenetrado e feliz, com elegâncias de mestre-sala e requintes de Zé Pelintra. Entre os foliões bandalheiros, além de latinhas, ele catava sorrisos e retribuia com sua alegria e com a leveza de seu samba solitário e impecável. Por coincidência ou ironia, ele tinha estampada, nas costas de sua camisa verde, o nome de um analgésico - Dorflex. Quer sedativo melhor do que a felicidade?, pensei comigo.
Pacíficos, alegres, gentis, conscientes e respeitosos, bandalheiros & bandalheiras viram a tarde cair azul entre a Ponte do Rosário e a Ponte da Cadeia. Ali, bem na esquina da Rua da Prata, um casal mais vivido, desinibido pela mistura do whisky com o maduro e grisalho amor, não se conteve em um beijo demorado, que os fez perder o compasso e o ritmo daquele rio de gente que seguia na mesma direção e velocidade que o Córrego do Lenheiro. Percebi então que na Bandalheira 2020 teve espaço pro afeto, pro amor e pra paixão, sem a condenação moral da idade...
Além dos sonhos pessoais e de um apache perdido, nenhuma fantasia no corpo dos foliões. Uma cigana, baiana, havaiana, rumbeira, espanhola, melindrosa, fada. Nada. Nenhum pirata, marinheiro, diabo, presidiário, índio, árabe, astronauta, escafandrista ou faquir dava humor e irreverência ao cortejo. Sequer criança idiotamente vestida de super-herói. Fantasiar-se dá mais cor, imaginação e liberdade à festa e por isso faz falta, mas também esse ano não teve. Deve ser porque nossa amarga realidade não é pra amador nem brinca carnaval. Bobeou, perdeu!, dançou!
Anoiteceu, acabou-se a Bandalheira 2020 e, como se diz em São João del-Rei ao fim de tudo o que é muito bom, "agora só no ano que vem!"
Que os outros blocos se mirem na Bandalheira e proporcionem aos são-joanenses e visitantes oportunidades de encontros e reencontros, amizade, harmonia, promessas, fraternidade, alegria e alívio pelas agruras, perrengues e aperreios do dia a dia!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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