Mal o ano começou e São João del-Rei, no imaginário do povo deste lugar, já está se avançando cinquenta, sessenta dias no tempo, vislumbrando os dois primeiros grandes marcos de seu calendário: o Carnaval e a Semana Santa. A cultura de nossa cidade é construída a partir de festas, ora religiosas, ora profanas, que se interligam, se sucedem, se complementam e dialogam, mostrando que o viver local é uma caminhada involuntária por um percurso fantástico e mágico, que transcorre entre a finitude e a eternidade. Quer realidade mais barroca do que esta, própria desta terra de el-rei?
No dia 6 de janeiro - dia dos Santos Reis -, o Menino Jesus, Rei dos Reis, sentado em seu trono, sai em uma pequena rasoura, pelos arredores da tricentenária igreja do Rosário, ao som dos sinos e da Banda de Música, reluzente em sua pueril majestade. Alguns dias passam...
Súdito deste rei, soldado de Cristo, a partir do dia 11 de janeiro, a cidade rende homenagens a São Sebastião, com novena, tencões e terententas, pedindo a ele que nos livre da peste, da fome e da guerra. No anoitecer do dia 20, crivado de flechas de prata e guarnecido de palmas vermelhas e amarelas, é a vez do soldado-santo-mártir sair em breve procissão, às vezes carregado por soldados do batalhão, tendo à frente, com sua bandeira e instrumentos de percussão, a Folia de São Sebastião.
No intervalo destas datas, já pairão no ar de São João del-Rei os preparativos para outra festa da realeza: a chegada e coroação do Rei Momo, com toda sua corte de ilusão e alegria, no reino do Carnaval. Tamborins, agogôs, abadás, paetês, surdos, serpentinas, reco-recos, plumas, confetes, caixas, apitos, frigideiras, lantejoulas cada vez mais se tornam parte do dia a dia. Inclusive à noite, transformando o magnífico portão de ferro do Cemitério do Carmo na cortina de fundo, escura, que protege e separa, do outro mundo, o território do samba. "Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar", há quem cante.
"Quanto riso, oh!, quanta alegria", não falta quem responda. Sorrisos largos, marchinhas inocentes, irreverentes, provocativas e debochadas. Cervejas, risadas, beijos, empurrões, fantasias, lascívias, descompromissadas seduções, suor, vodca barata, descartáveis paixões, caipirinha, cachaça, purpurina, ressaca.... É dia, é noite, é madrugada, o bloco está na rua. Na frente das igrejas. Nos largos, nos becos. O bloco está na alma.
Mas outro rei está a caminho. Na noite da terça-feira gorda, enquanto a cidade delira, os sinos prenunciam nova sina. Das torres da Matriz do Pilar, às nove e quinze em ponto, vem do alto o toque anunciando, em breve, a Quarta-feira de Cinzas. E o caminho temporal por onde chegará o Rei dos Judeus, com seu manto vermelho, sua coroa de espinhos e seu cetro de cana verde, para assim reinar por quarenta dias. Dias pesados feito chumbo.
Também essa era de penitência e mistério os são-joanenses conhecem, anseiam, desejam e esperam, para viver com grande intensidade, imersão e prazer...
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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