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No mês de agosto, sem lugar para o desgosto, São João del-Rei mais parece um conto de fadas!


Conta a lenda que agosto é o mês do desgosto. Se é em várias partes do mundo, pelos mais diversos motivos, em São João del-Rei não é bem assim. Afinal, é no oitavo mês do ano que, há mais de 280 anos, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte realiza uma celebração barroca que, sem dúvida nenhuma, nos moldes em que acontece, é única no mundo: a dormição de Nossa Senhora, sua assunção ao Céu e coroação pelas três pessoas da Santíssima Trindade.

Mas se, com o mesmo enredo, existir outra similar em algum lugar do planeta, de modo algum é tão bonita quanto a de São João del-Rei. Tudo o que a envolve é de tamanha e tão bela delicadeza, que parece mesmo ser o sonho de Nossa Senhora. Um sonho que dura onze dias, ocupados por uma novena, uma piedosa e longa vigília, uma soleníssima missa cantada, duas magníficas procissões e o canto do Te Deum.

Não é atoa que as solenidades da Boa Morte são a festa religiosa são-joanense que inspirou o maior número de compositores locais, desde o século XVIII aos nossos dias, e inspirou até um escravo a compor um repique dúbio, que é ao mesmo tempo fúnebre e festivo, para anunciar o adormecer da mãe de Deus. Bonito tal qual o antigo toque dos sinos que anunciava a subida de “anjinhos” para o céu, ou melhor, a morte de crianças menores de 7 anos.

Batizado como A Senhora é Morta, esse toque é um encanto à parte. Todo ano é ouvido pela primeira vez no encerramento do último dia da novena, acompanhando a Orquestra Lira Sanjoanense na execução do refinado Minueto, que foi composto especialmente para aquela ocasião. Imagine como é bonito o milagre de harmonizar em uma única pauta musical o toque de sinos de bronze com o som de violinos, flautas, violoncelos, trompetes e outros  sonoramente delicados instrumentos. Depois de então, o toque A Senhora é Morta é executado diversas vezes, de tempos em tempos, até antes de começar o canto do Glória, da grande missa da Assunção, às 10 horas do dia 15 de agosto.

Desde que amanhece a véspera, 14 de agosto, até o avançar da noite do dia seguinte, de toda parte brotam flores orvalhadas no centro histórico de São João del-Rei. De sacadas em sacadas, chovem pétalas úmidas e perfumadas, se encontrando no ar com o aroma de um incenso que, queimado em brasa, em turíbulos de prata, exala cheiro de alfazema, de angélicas, de jasmins, enfim de tudo o que, como disse Manuel Bandeira, é puro e cheira: cravo, lírio, camélia, manacá, flor de laranjeira...

Tudo é encanto. Tudo é magia. Tudo dá margem às mais sublimes asas da imaginação. Passeando pelas ruas, largos, becos e ladeiras de São João del-Rei, na noite do dia 14, deitada em seu esquife enfeitado de rosas, orquídeas e flor de pessegueiro, Nossa Senhora mais parece a Bela Adormecida, conduzida no ombro de velhos padres, vestidos de alva batina, amarrada na cintura com grossos cordões de algodão. De passos em espaços, a orquestra canta motetos bendizentes que cortam o silêncio.

A missa cantada do dia 15 é bela como uma épica rapsódia. Conta a história de uma mulher  que, brilhante como o sol e bela como a lua, assustava, subjugava e vencia o dragão furioso que insistia em derrubar com a cauda, céu abaixo, a estrelas do firmamento. Seria o dragão a serpente, alada, que enganou Eva, para que ela seduzisse Adão, embaraçando os caminhos e apagando as luzes do Paraíso?

No sonho, tudo se pode, até o que não se sonha. Imagine que Nossa Senhora da Assunção, sorrindo de tanto encantamento, sobe aos Céus sentada no ar, pisando displicente sobre uma lua crescente de prata e, tal qual Cinderela, deixa cair entre as nuvens o sapatinho de cetim, bordado a fio de ouro e pedrarias.

Nesse universo de São João del-Rei, algum agosto pode ser mês do desgosto?

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