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Em São João del-Rei quem tem padrinho não morre pagão!


 

Pode até parecer exagero dizer isto, mas, na verdade, São João del-Rei é uma das cidades de mais intensa religiosidade do país. Guardadas as devidas proporções, não é equivoco dizer que nossa terra - cada qual com suas especificidades históricas, religiosas e culturais - se iguala a Salvador, Roma Negra, onde majoritariamente se respira e se transpira religiões de matriz africana.

Pela questão identitária que molda nossa maneira de ser, os são-joanenses são modestos e discretos, quase acanhados, na demonstração de sua fé popular. Fora a opulência dos templos barrocos e a sofisticação das tradições e ritos tricentenários, que fazem nossos conterrâneos encher o peito de orgulho, a conversa que eles têm com os "santos de casa" é coisa íntima e, mesmo quando acontece em espaços públicos, é recatada, cifrada, em voz baixa, gestos rápidos e comedidos, quase silenciosa. Lembram daquela recomendação de Jesus Cristo quanto ao anonimato das orações e dos jejuns? Pois é...

Nos situando apenas na área urbana, além dos cruzeiros plantados na era colonial e de outros que continuam sendo assentados na atualidade, a cidade possui uma infinidade de grutas erigidas artesanalmente com pedras e cimento, dos mais diversos tamanhos, para abrigar e expor à oração santos católicos. Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Lourdes, Santo Antônio, e tantos outros. 

A maioria destas grutas ficam em recantos, talvez buscando relativo recolhimento, e em várias delas, de acordo com o calendário litúrgico, são celebradas missas, vias-sacras, orações do terço, novenas e realizadas pequenas procissões populares, em cortejos  que circulam pelas ruas daquele entorno.

Muito recentemente, um novo orago foi erguido em uma situação que em tudo se difere das grutas votivas são-joanenses. Trata-se de um oratório, montado aproveitando a forquilha de uma grande árvore, no calçadão para pedestres e  ciclistas que corta em duas metades a  mui movimentada Avenida Leite de Castro, quase em frente à Verona Móveis.

Protegendo e sendo protegido por Nossa Senhora Aparecida, o oratório tem segurança garantida por uma discreta grade de ferro, e por um terço de Nossa Senhora de Nazaré - quem duvida do poder miraculoso deste instrumento de fé? Pintado de amarelo, certamente com tinta que sobrou de alguma obra, e enfeitado com coloridas flores artificiais, o pequeno e singelo monumento é identificado com uma inscrição escrita com tinta preta: Nossa "Senhôra" Aparecida Rogai por Nós. 

Na verdade, não é bem uma identificação, mas um pedido, ou talvez até um mantra, a ser entoado em silêncio pelos passantes, ciclistas, corredores, trabalhadores, estudantes, pais com crianças, casais, adolescentes com cães, idosos com cansaço e lembranças, que pela manhã ou à tarde caminham naquela calçada.

A maré não está para peixe. O mundo está virado pelo avesso. O apito das fábricas de tecidos se calou para dar lugar às sirenes do SAMU, da Polícia, do Corpo de Bombeiros. Mas como os são-joanenses sabem que "seguro morreu de velho" e que "quando a gente vê a barba do vizinho arder coloca logo a nossa de molho", reforçam como podem a sua fé. Fazem o que podem e tentam trazer para junto de si, para as encruzilhadas de seus caminhos, a proteção do que dizem estar lá em cima, Altíssimo.

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Texto e foto - Antonio Emilio da Costa 


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