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Em São João del-Rei, mistérios não são secretos. São encantamentos!


São João del-Rei é uma caixa de surpresas. Muitas vezes do nada, quando menos se espera, num lugar que sequer se imagina,  a gente depara com algo extraordinário, que chama nossa atenção, interrompe nosso caminhar e desvia nosso pensamento, de tão inusitado que é. Em geral são cenas, fatos, objetos e situações culturais que nos falam do modo de viver, de sentir, pensar e agir dos são-joanenses. Quase sempre são temas que perpassam a religiosidade, a crença, o passado, os afetos e o intangível. Quem se atenta, observa e analisa estas situações, com certeza passa a entender melhor que certezas, sonhos e esperanças povoam a alma do povo deste lugar.

Um destes momentos mágicos acontece todo ano, nas ruas e largos do centro histórico, na semana entre o Natal e o Ano Novo. Não há quem não se surpreenda e se encante com as folias de reis "contemporâneas" que, entre igrejas, pontes e casarões, dão cor e ainda mais vida ao coração de São João del-Rei. Vindas de Juiz de Fora, que é sua origem, em geral elas têm o nome de uma estrela natalina: Estrela de Belém, Estrela Guia, e são em tudo muito diferentes das folias que são comuns em Minas Gerais. 

Enquanto as folias tradicionais se apresentam de modo discreto no vestir, no cantar e no caminhar pelas ruas, parando nas casas em que as famílias são receptivas àquela manifestação  religiosa da cultura popular, como se fazia antigamente, as novas folias são high tech. Seus membros são homens negros, bastante jovens, vestidos com macacões largos e de cores fortes, todo cobertos de babados. A maioria carrega na mão, como adereço, máscaras estranhas, surrealistas, de muitos chifres e outras características que as fazem parecer fantásticas e quase assustadoras. Mas só até a gente saber que elas simbolizam a noite de trevas em que vivia o mundo até nascer o Salvador - Jesus, luz do mundo, alegria dos homens.

Estas folias não carregam a bandeira característica da folia de reis tradicional, mas sim um pequeno. gracioso e muito bonito oratório, e dentro dele alguma imagem sacra muito significativa. No caso da Folia Estrela Guia, era um Divino Espírito Santo - a pombinha branca, de asas abertas, e cabeça ternamente inclinada.

Ao invés de repetir toadas singelas, quase melancólicas, típicas das folias de reis tradicionais, os jovens negros das novas folias cantam, num ritmo lento, porém firme, marcado pela percussão discreta, músicas de cunho religioso e caráter popular. Como por exemplo a canção Nuvem Traiçoeira, gravada pelo padre Marcelo Rossi com o cantor Belo, há quase 15 anos. Porém, tudo - a indumentária, os adereços e os cantos - é igualmente autêntico, respeitoso e devocional, a ponto de também enternecer e despertar sentimentos desconhecidos e profundos, que a gente não reconhece em nós no dia a dia.

Em 2022 foi bonita e tocante a adoração que a Folia de Reis Estrela Guia fez ao Menino-Deus, no entardecer do dia 27 de dezembro, na Matriz do Pilar. Despojados de seus adereços, que muitos deixaram na rua, em frente à igreja, e outros do lado de fora do adro, eles entraram no templo até a altura do tapa-vento, onde repousaram o oratório e cantaram várias orações. Depois, de joelhos, alguns até descalços, seguiram até o presépio onde, contritos e verdadeiros, prosseguiram sua sincera adoração.

Certamente a Sagrada Família sorriu, os três reis magos e os pastores, admirados, chegaram mais perto para ver aquela brilhante Estrela Guia. Ao mesmo tempo Jesus, na sua humilde manjedoura, se alegrou por ter vindo a este mundo cruel e, com o olhar, abençoou aqueles vinte e poucos homens, que vieram de longe, sabe Deus como. Assim como também sabe Deus como eles passam, debaixo de sol e chuva, no período em que visitam nossa cidade. Onde comem, o que comem, se é que fazem refeições. Onde dormem, tomam banho, repousam e se refazem para prosseguir em sua exaustiva missão religiosa no dia seguinte. Mistérios...

No mundo há mistérios que ninguém sabe nem decifra. Em São João del-Rei, mistérios não são segredos. São encantamentos!

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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa

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