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Em São João del-Rei, nem tudo o que reluz é louro!

Se te parassem na rua e, sem mais, te perguntassem qual a contribuição cultural que os africanos, eles próprios e seus descendentes, deram para a formação da identidade são-joanense, na ponta da língua o que você responderia?

Certamente você demoraria alguns segundos para pensar e apontar alguns exemplos, muitos deles do tempo do ouro e sem nenhuma conotação cultural, mas relacionados ao trabalho braçal, primitivo, pesado, na base mais rasteira da escala produtiva, não é mesmo? Cortar e carregar pedra para a construção das pontes e das igrejas, para a construção civil e para o calçamento urbano. Faiscar e garimpar nas betas e, também como fruto do trabalho escravo, dar conta de todos os serviços da casa grande e das propriedades de seu senhor. 

Muito pouco, você não acha? Mas também muito fácil de compreender. Vamos lá: se fosse feito um censo de cidades, no quesito cor, muito possivelmente São João del-Rei se autodeclararia uma terra morena. 

 Me diga uma coisa: e esta tão grande quantidade de pessoas negras, de vários tons de pele, que a gente vê o dia inteiro em todas as partes da cidade? Do Tijuco a Matosinhos, do Bonfim ao Senhor dos Montes? No comércio, nas ruas, nos bancos, nas igrejas, nas farmácias, nas repartições públicas, nos supermercados, nos jardins da avenida... 

Morena é uma cor que não existe na classificação que o IBGE usa para identificar a população brasileira, porém. no assunto em pauta, é simples compreender..Em São João del-Rei, assim como em outras partes do país, quem não é branco, nem preto muito escuro ou negro retinto, é tudo moreno. Moreno claro, moreno escuro, moreno-jambo, cor de canela, moreninho... Esta é uma discussão que dá pano pra manga, ou melhor, para a manga, para gola, para os bolsos e  para a roupa inteira , mas não desviemos do nosso caminho.

Voltando à pergunta desta nossa prosa, qual a contribuição cultural que os africanos e seus descendentes, em nossa região, deram para a formação da identidade são-joanense? Vamos em partes, começando pelo que é mais visível e conhecido.

Cidade da Música, não é assim que São João del-Rei gosta de ser chamada? Pois é. Qual era a cor de muitos dos músicos e maestros que, a partir do século 18, compuseram as músicas de nossa Semana Santa e das missas cantadas, novenas, ladainhas, Ofício de Trevas, Te Deum's e outras liturgias católicas, que só são realizadas aqui? Padre José Maria Xavier, Presciliano Silva, Martiniano Ribeiro Bastos, João Francisco da Matta e tantos outros? E mais: qual é a cor de muitos músicos de nossas bicentenárias orquestras, que até hoje mantêm vivo um repertório sacro reconhecido mundialmente? E de nossas bandas de música? Lembremos que a Orquestra Lira Sanjoanense chegou a ser apelidada de "Rapadura", pelo tom escuro da pele de seus músicos.

Cidade onde os sinos falam, é assim que São João del-Rei se apresenta para o Brasil e para o mundo. Subir nas torres e atravessar de uma para outra, passando pelo telhado da igreja, não é para qualquer um, assim como colocar o sino a pino, tocar, dobrar e repicar, repetindo exatamente o que se aprendeu pela observação. Além de força, disposição, gosto e entusiasmo, a atividade sineira requer memória apurada, atenção redobrada e muita dedicação. Há quem diga até que o famoso toque "A Senhora é Morta", executado no dia 14 de agosto, foi musicalmente composto por um escravizado que pertencia à Sinhá Ana Romeira.

Se música é festa e alegria - e a cultura negra é a celebração disto tudo -, então entramos no terreiro da cultura popular, com toda sua riqueza e espontaneidade. Folias de reis, congados, pastorinhas, os antigos Zé Pereiras, ranchos carnavalescos, populares escolas de samba. Desprovidos de erudição e com poucos recursos financeiros e educacionais, em que fonte os líderes dos grupos espontâneos e os dirigentes das agremiações carnavalescas antigamente bebiam para criar seus cortejos e desfiles, suas cantigas, sua sonoridade percussiva, seus trajes, coreografias, suas marchas-rancho, seus enredos, seus sambas, fantasias e alegorias?

O protagonismo institucional dos negros em nossa terra antecede até mesmo a criação da Vila de São João del-Rei, ocorrida em 1713. Cinco anos antes, em 1º de junho de 1708, foi instituída a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos - a primeira irmandade são-joanense e a mais antiga irmandade de negros em Minas Gerais. Somente por este fato já se pode ter ideia da pujança e da importância dos africanos e seus descendentes em nossa terra naquela época, quando intensificava o povoamento do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes. A capela de Nossa Senhora do Rosário, patrona daquela irmandade, já estava erigida em 1719. A imagem da padroeira foi entronizada em 1720, poucos meses antes da criação da Capitania de Minas Gerais.

Apesar de ter sido nos séculos 18 e 19 uma agremiação de escravos, a Irmandade do Rosário dos Pretos de São João del-Rei era uma instituição forte, importante e socialmente muito representativa. Tanto que, segundo os professores Silvia Brugger e Anderson de Oliveira, a Irmandade do Rosário de nossa cidade tinha até uma "embaixada benguela", para reunião dos negros, com intuito de fortalecer as raízes africanas da emergente cultura afro-brasileira, que começava a nascer, e também de solidariamente socorrer os irmãos negros desamparados, desassistidos e necessitados.

Mesmo falando apenas sobre o aspecto cultural da contribuição africana para a formação da identidade são-joanense, o que conversamos acima é muito pouco e se refere, basicamente, aos séculos 18 e 19. Não discorremos sobre a culinária, a sabedoria popular, religiosidade, vocabulário e modo de falar, gestual, filosofias e visão de mundo segundo as muitas e diversas culturas africanas. Nem sobre as contribuições mais recentes e as atuais, sobretudo no campo do saber formal, da educação, da ciência, das artes, da música, da literatura, e tantos outros. 

Desdobrar estes assuntos fica para uma conversa futura, mas enquanto isto não acontece, tenha sempre em mente que, em São João del-Rei, nem tudo o que reluz é louro!

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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa

Fontes: 

https://www.jornaldaslajes.com.br/integra/historiador-da-ufsj-lanca-livro-sobre-musicos-negros-no-seculo-xix-e-sobre-a-tradicao-musical-de-sao-joao-del-rei/1493/

https://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com/2012/06/irmandade-do-rosario-dos-pretos-de-sao.html

https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/23247/16637

https://www.scielo.br/j/tem/a/CLL4ykvWvWVs9ZcXNjMj56d/abstract/?lang=pt

https://www.scielo.br/j/tem/a/CLL4ykvWvWVs9ZcXNjMj56d/?lang=pt



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