Em São João del Rei não é raro, volta e meia a gente ouvir, algum são-joanense, com um quê de mistério, dizer:
- "Aqui em São João, parece que tem uma coisa!..."
Se prestar bem a atenção na vida da cidade, você vai ver que de fato eles têm razão. Em São João del Rei, às vezes do nada, parece que uma porta se abre, rompendo a delimitação dos tempos e dos mundos. Nestes momentos, há quem quase fique sem saber se está no aqui e agora, no hoje, presente, ou se está lá e antes, no ontem, passado.
E isto não ocorre só nas grandiosas, solenes e pomposas tradições barrocas, que são a principal identidade são-joanense não. Esta dúvida, na verdade, é a certeza de que foi transposto o portal do lado racional, pragmático e definitivo e então se está a transitar nos territórios da emoção e da memória afetiva.
A procissão de São Benedito, realizada em meados de maio na capelinha do Bonfim, é um dos melhores exemplos. Extremamente delicada e singela, assim como a capela, não percorre as ruas principais ou mais vistosas. Pelo contrário, ela escorre por ruas tortuosas, gravemente íngremes, onde espaçadamente, assim como as contas do rosário que o santo carrega na cintura, muitas famílias enfeitam as janelas de suas casas com toalhas rendadas, jarras de flores artificiais, pequenas imagens diversas e, sempre, duas velas acesas. De lá, contentes, até parece que os moradores sorriem para o santo negro, franciscano, filho de africanos.
Quem acompanha São Benedito em seu andor tão enfeitado de flores naturais, vai em silêncio e até parece ter com ele uma certa intimidade. Quase uma respeitosa amizade, alimentada pelo convívio frequente, quando confidenciam a ele suas dúvidas, suas provações, suas esperanças e suas necessidades. Quem sabe, compassivo, ele não ajude no que pode?
Diferente das demais procissões de São João del Rei, esta não tem banda de música, mas quem marca seu ritmo é uma sonoridade telúrica e ancestral, levando a um tempo onde o que se ouvia era o bater forte do coração. Este tempo, sai dos instrumentos de percussão do Moçambique e Catopé Nossa Senhor do Rosário e São Benedito, da comunidade de São Dimas. Com seus chapéus de longas fitas coloridas, uniforme branco e azul, contas e guias de miçanga, sementes, contas de lágrima em volta do pescoço ou cruzados no peito, tocando caixas, surdos, reco-recos, sacudindo chocalhos nos tornozelos, homens e mulheres, com toda religiosidade e respeito, respondem aos cantos puxados com firmeza pela rainha de Nossa Senhora do Rosário, vestida e coroada de nobreza e felicidade, cor-de-rosa, branco, vermelho, azul e dourado.
Tudo é singelo, sagrado, encantador, pulsante, natural e humano - tanto quanto São Benedito - nesta procissão. De volta à capela, São Benedito vira-se de frente para o povo e debaixo das estrelas coloridas dos fogos de artifício, recebe vivas, homenagens da porta-bandeira, dos membros e da rainha do Moçambique e Catopé. Depois, andando de costas, entra para a igreja e lá dentro recebe novamente as homenagens de todo o grupo, que lhe acena os chapéus de fita colorida, como se despedindo de alguém querido, que vai ali perto, de trem ou de ônibus, mas volta depressa, se for chamado, para ajudar um dos seus que estiver desamparado.
Entre estas e outras, tão comuns no dia a dia de São João del Rei, considere e me responda.:
- "Aqui tem ou não tem uma coisa?..."
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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