O calendário da vida, em São João del-Rei, é regido pelas festas religiosas. O são-joanense tradicional, "legítimo" - como diziam (e ainda dizem!) os mais antigos quando querem testemunhar que algo é 'o orignal e verdadeiro' -, medem o tempo pelos ponteiros de deus girando numa ciranda alegre e festiva de celebrações, que se sucedem pelo ano inteiro. De janeiro a dezembro. Pensando sob uma certa perspectiva, pode-se até mesmo dizer que o calendário religioso de nossa terra tem mais dias do que o calendário civil.
Há pouco mais de um ano, a cidade de repente viu-se diante de uma nova realidade. A pandemia do coronavirus virou o mundo pelo avesso e, nele, São João del-Rei. Do dia para a noite, uma des-ordem se estabeleceu, tão perigosa quanto desconhecida e misteriosa, e qualquer deslize, inocente ou acidental; qualquer transgressão, deliberada ou por vontade própria, quase sempre tem levado ao que em toda parte é líquido e certo: à morte.
Mas aqui, não à morte como desde cedo sempre se conhece, vizinha da vida, no abraço que os lares dão nos cemitérios, mas à outra - subtrativa, silenciosa, solitária, seca, nua de flores, choro nem vela. Pura ausência, desaparecimento e nunca mais.
Em 2021, pela segunda vez consecutiva, o povo de São João del-Rei não pôde ir às ruas e seguir as vias sacras, tocar na capa de Nossa Senhora das Dores, passar debaixo da cruz do Senhor dos Passos em sentido anti-horário e acariciar-lhe a chaga do tornozelo direito, rezar nas noturnas Encomendações das Almas, buscar manjericão, arnica e rosmaninho, admirar os tapetes coloridos, tocar ou beijar o Cristo morto no ato da Adoração da Cruz, testemunhar a cena do Calvário, ouvir sermões, acompanhar o enterro do Senhor com todos os personagens do Antigo Testamento e, no final da noite, diante do esquife, trocar moedas na salva de prata onde se dão esmolas que antigamente eram "para a cera do Santo Sepulcro!". Sempre deixando em troco de uma pequena, outra ou muitas, de maior valor.
Sem a vivência física deste marco religioso e cultural que são a Quaresma e a Semana Santa na existência são-joanense, para o povo ficou mais uma lacuna. Susto sentido e frustração contida, como se alguém tivesse apagado alguns números do relógio, de modo que aquelas horas passaram e ninguém viu nem viveu. Assim como não mais poderá vivê-las, uma vez que "o tempo que passa não volta".
Tal qual no final da Terça-Feira Gorda, também era comum (e ainda é!), ao voltarem para casa no Domingo de Páscoa, já cheios de saudade do que se findava, os são-joanenses legítimos se despedirem dizendo:
- "Agora só no ano que vem...", ao que os de mais idade respondiam:
- "Tomara que eu esteja vivo até lá para ver!"
Em 2021, tudo isto foi só lembrança e pensamento. São João del-Rei tem saudade do que não viveu!
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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