Antigamente, em São João del-Rei, no tempo em que nossos pais viviam a infância, certamente fazia parte do universo deles a mula-sem-cabeça: aquela figura imaginária e muito temida, que andava a horas mortas pelos locais ermos, nas noites da quaresma. Seu tropel, ora lento e bem compassado, ora veloz e desritmado, era percebido pelo bater de seus cascos no calçamento das ruas, e do mesmo modo que surgia, desaparecia, no silêncio, ao longe.
Fora a estória de uma ou outra alma penada, em um corpo decapitado, vagando pela noite à procura de sua cabeça, cortada por castigo, vingança, cobiça, inveja, ira - ou simplesmente por crueldade - em São João del-Rei, sempre que se falava (e ainda hoje quando se fala!) que alguém perdeu a cabeça, na maioria das vezes é para justificar desaforos, adultérios, crimes passionais, e até mesmo assassinatos.
Mas neste domingo por volta do meio-dia, passando pela lateral direita da igreja do Carmo, uma cena incomum chamou minha atenção: São Jorge decapitado, ainda garboso sobre seu cavalo branco, insistia decidido na sua luta contra o dragão, aterrorizado ainda mais pelo fato de que seu cruel inimigo estava sem cabeça. Aliás, a cabeça do guerreiro estava ao lado, de capacete e olhos arregalados, no chão, virada para a parede de pedra daquele magnífico templo.
Como esta cena inusitada foi acontecer exatamente ali, quase em frente ao antigo Beco do Capitão do Mato, hoje uma poética passagem entre o que outrora fora a Rua do Pecado e a ainda nobre e respeitável Rua do Sagrado? Ilustrava uma alegoria metafórica criada visando a evangelização, conversão e salvação dos pecadores?
Seria pelo fato de que na sacristia da igreja do Carmo tem uma imagem de São Jorge, revestida de dignidade, que, juntamente com o dragão, recebe orações, pedidos e afetos de devotos e de turistas em busca de benfeitorias e proteção? Quem vai saber?
É simples. Muitos são-joanenses, fiéis às memórias e aos ritos do passado, conservam e mantêm viva a tradição de depositar, em local sagrado, geralmente nas pias de pedra das igrejas barrocas ou nos cruzeiros, imagens danificadas ou já em pedaços, terços arrebentados e outros objetos religiosos de uso pessoal. Mesmo quebrados ou sem condições de uso, estes materiais - principalmente se tiverem sido bentos -, tanto pelo carater emocional e afetivo quanto pela fé que em si encerram, devem ter fim em um lugar santo e digno. Segundo este costume, jamais devem ser descartados no lixo, na rua ou em locais vulgares e indignos, não por temor a castigos divinos, mas em sinal de respeito à crença e à fé que tanto já lhes socorreu em incontáveis momentos de angústias e aflição.
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
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