Aliás, a palavra "corona" é cantada duas vezes na última parte do lamento da Verônica, que naquela noite emudece e tira o ar dos são-joanenses na escadaria da igreja das Merces, precedendo a Marcha da Paixão, que a Banda Theodoro de Faria toca, dando emoção e ritmo ao início da monumental Procissão do Enterro. E, depois, nas vezes que a Verônica mostra o sudário e canta no Largo do Rosário, em frente à casa onde nasceu Bárbara Heliodora (cruzamento da Rua da Prata com o Largo São Francisco), em frente à antiga Delegacia de Polícia, na encruzilhada dos Quatro Cantos, no meio do largo da igreja do Carmo e, pela última vez, na escadaria da Matriz do Pilar, anunciando que ali está chegando ao fim a procissão.
"Cecidit corona / cecidit corona / capiti nostri...", canta a várias vozes o coro da Orquestra Ribeiro Bastos, e traduzido do latim, este verso quer dizer, 'caiu-nos da cabeça a coroa'. E foi literalmente isto o que ocorreu neste começo de ano em São João del-Rei, quando, em prevenção contra o novo coronavírus 19, as celebrações da Quaresma e Paixão de Cristo 2020 foram interrompidas e suspensas às vésperas do final de semana da Festa de Passos, que então resumiu-se às 3 Vias Sacras solenes.
Além de ser um evento religioso de grande significado, a Semana Santa é um marco cronológico e existencial no calendário são-joanense. Sem ela, o povo daqui, de algum modo, perde a noção do tempo; desorienta-se pela falta desta referência que o situa e pontua no tempo e no espaço. Tanto é assim que, também contingenciado pela realidade preocupante da pandemia da Covid 19, o relógio de nossa cidade ficou reticente, guiado pelo "tempo indeterminado" que se lê de porta em porta no comércio local, informando o fechamento de todas as lojas.
Deste modo, no momento São João del-Rei vive um tempo nebuloso e indefinido quanto ao futuro, a curto e médio prazos. Dia e noite ruas, becos, largos e praças vazias. As poucas pessoas que se arriscam a sair de casa, caminham sozinhas, compenetradas, silenciosas e apressadas, como se estivessem a cometer clandestinamente um ato secreto e condenável.
Sem missa, sem procissões, sem novenas, sem ofícios sacros, sem orquestra. A alma trancada dentro da casa fechada, espreitando com medo o que pode vir pela porta adentro, ameaçador, indesejável e incontrolável.
Nada de tencões, nem de terentenas, nem de floreados, nem de dobres nem repiques, nem de batucada e batucadinha, nada de canjica queimou. Só os dobres fúnebres, na hora dos enterros, e, agora, o que o povo vem chamando de "Toque da Penitência" (vídeo abaixo), que é o toque da /Via Sacra, executado conjuntamente nos sinos de todas as igrejas, ao meio-dia, às 3 e às 6 da tarde. Neste "novo arranjo" desconhecido dos são-joanenses, vem sendo dito até que este toque havia sido executado pela última vez na cidade em 1918, quando a gripe espanhola - assim como agora o novo coronavírus 19 - assolava e aterrorizava o mundo. O mundo, este, que dá muitas voltas...
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*Toque da Penitência - Segundo o Padre Geraldo Magela, vigário geral da Diocese de São João del-Rei,em matéria publicada no jornal Gazeta de São João del-Rei, na verdade, o toque que vem sendo ouvido às 12, 15 e 18 horas é o toque da Via Sacra, porém executado simultaneamente nos sinos das igrejas do centro histórico.
Certamente são os diferenciais de ser executado em várias torres ao mesmo tempo, e em uma realidade de temor pela disseminação do coronavírus, que o levaram a ser popularmente chamado Toque da Penitência, denominação que, segundo Padre Geraldo, não é seu nome oficial.
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Texto, foto e vídeo: Antonio Emilio da Costa
Belíssimo texto!
ResponderExcluirAgradeço seu comentário. Sem dúvida, um ato muito generoso.
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