Em São João del-Rei, os santos são amigos. Gostam de se encontrar, de conversar e matar a saudade, nem que para isso seja preciso se desculpar com o bispo, desobedecer o pároco, contrariar as irmandades e até mesmo a vontade do povo, como às vezes acontece.
Quando resolvem colocar debaixo do braço auréolas e santidades, para sair do sério, basta apenas a oportunidade de uma procissão. Nestes dias, esperam somente o cortejo atravessar um largo e dobrar duas ou três esquinas para rapidamente recolherem do céu as estrelas e jogarem das nuvens um bom pé-d'água. Pode ser até que ele passe depois de alguns minutos, mas até que isto aconteça, o povaréu já se dispersou. As irmandades encurtaram o caminho e os ilustres carregadores do andor, de lanternas e do pálio protetor da autoridade eclesiástica tomaram o rumo da igreja mais próxima, onde o santo - que estava a passear em procissão pelo centro histórico, ao som da banda e dos sinos - passará a noite.
Lá, ele se juntará a outros santos e anjos, que esperam apenas o sacristão fechar as portas e apagar a luz das velas para tagarelarem noite inteira e colocar em dia verso e prosa, para avivar e aquecer tão velhas amizades. Relembram das santidades que moram em outros templos; falam de penitências, sofrimentos, torturas, suplícios e martírios; riem dos apuros que tantas vezes passaram, quando viviam na Terra e ainda não tinham ganhado asas para o Céu. Confidenciam sortilégios da humanidade que lhes tiram o sono e confabulam planos para enganar o Mal, desviar seus caminhos, levando-o para bem longe de qualquer ser vivente. É isto o que Deus e os homens deles esperam.
Assim, de uma hora para outra, São Francisco desvia o trajeto e sobe a escadaria da igreja de São Gonçalo. São Sebastião para na igreja do Carmo. Nossa Senhora da Glória e a Santíssima Trindade entram às pressas no Hospital das Mercês. Nossa Senhora das Dores suspende a capa de céu noturno, tira o diadema de prata e estrelas e fica na igreja do Rosário. Senhor dos Passos resolve transferir o encontro com sua mãe no Largo das Mercês para o dia seguinte, segunda-feira e, como desculpa, faz chover à tardinha, no quarto domingo da Quaresma. Tudo para visitar o santo amigo e conversar com ele a noite inteira...
Depois do choro pela frustração da roupa nova molhada e de uma noite mágica escorrida em enxurrada pelos bueiros de pedra rumo ao Córrego do Lenheiro, era assim que as crianças de antigamente, quando chegavam de volta em casa, justificavam umas para as outras a chuva que pôs fim à procissão. E logo em seguida ficavam felizes de novo, sabendo que no dia seguinte a festa continuaria, a partir da igreja onde o santo parou.
Informante: Carmen Trindade da Costa, SJDR, 88 anos
........................................................
Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
Comentários
Postar um comentário